quarta-feira, 16 de agosto de 2023


16 DE AGOSTO DE 2023
CARPINEJAR

Jardim da infâmia

Quase fui expulso do jardim de infância.

Estudava na escolinha Patinho Feio e inventei de casar com a colega Ana Maria. Ambos contávamos com cinco anos. Nos recreios, dividíamos os lanches, as bolachinhas recheadas, a térmica com achocolatado, e pensei que estávamos maduros para o próximo passo.

Mas dependia de uma demonstração de amor para formalizar o matrimônio. Eu fui até a caixinha de joias materna e embrulhei metade delas em um papel ofício. Entreguei colares, anéis e pulseiras para Ana Maria. Um festival de pedras coloridas para celebrar nossa vida em comum.

Na época, não pensava que era um roubo, entendia o que era da mãe como meu. Não havia um limite privado claro entre os pertences. Fui chamado pela direção, meus pais também, os sogros também, e recebi um sermão de que não poderia pegar nada na vida sem autorização.

Eu me divorciei de Ana Maria antes mesmo de casar, acabei trocado de turma e devidamente vigiado com revistas semanais em minha merendeira. Não segui a carreira romântica de cleptomaníaco. O trauma impediu desfalques futuros.

Eu recordei essa cena ao acompanhar o caso do tráfico de joias do governo anterior para leilões secretos, que comprometeu especialmente duas famílias, a do ex-presidente Jair Bolsonaro e a dos militares Cid, representados pelo general Mauro Cesar Lourena Cid e o tenente-coronel Mauro Cid.

Numa ação batizada de Lucas 12:2, a Polícia Federal apura o desvio de dinheiro público para enriquecimento ilícito. O versículo diz: "Não há nada escondido que não venha a ser descoberto, ou oculto que não venha a ser conhecido".

A investigação encontrou fortes indícios de que o grupo do ex-presidente mandou para fora do Brasil e tentou comercializar ao menos quatro conjuntos de presentes. Empregava a aeronave da Força Aérea Brasileira para a evasão clandestina das riquezas aos Estados Unidos, onde possivelmente foram convertidas em dinheiro vivo em pregões no mercado paralelo.

Parte das joias teria sido dada pelo governo da Arábia Saudita, em missões oficiais, a representantes do Estado brasileiro. O presidente ganha tais oferendas como personificação do Executivo, e não como pessoa física. Ele pode ficar com medalhas personalizadas, bonés, camisetas, gravata, chinelo e perfumes, ou seja, material exclusivo de uso pessoal e de valor baixo. Jamais pode subtrair para seu benefício o acervo de cortesias internacionais.

Além da natureza criminosa do ato, existe um escândalo diplomático. O que foi dado revelava um objetivo moral de selar as boas relações entre os países. Os mimos costumam simbolizar princípios éticos, religiosos e culturais de uma nação, que repassa o que tem de mais valioso do seu patrimônio como amostra de confiança.

Não são apenas joias, mas esculturas e objetos sacros, que indicam um pacto de honra, o qual talvez tenha sido violentamente profanado pelo leilão no Exterior. As irregularidades têm grandes chances de serem comprovadas com a quebra de sigilos telefônico, telemático, bancário e fiscal de todos os envolvidos.

Do meu jardim da infância ao jardim da infâmia da revenda de itens diplomáticos, há um grande abismo: nem Jair Bolsonaro e a ex-primeira-dama Michelle, nem os expoentes do Exército Cid tinham cinco anos. Eles sabiam o que estavam fazendo.

CARPINEJAR

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