terça-feira, 29 de agosto de 2023


29 DE AGOSTO DE 2023
NÍLSON SOUZA

Shroeder

Minha carteira de motorista está no meu celular. Título de eleitor, carteira de trabalho, RG, tudo pode ser digitalizado e validado na telinha que levamos no bolso ou na bolsa. Ninguém mais precisa carregar uma papelada consigo. Meu banco permite que eu deposite cheques físicos (já são quase peças de museu, mas ainda existem!) por meio de imagens que capturo e transmito pelo iPhone. O Pix está sepultando definitivamente notas e moedas. Nessa área documental, os Jetsons chegaram para ficar, não há mais como retroceder. E nem devemos: tudo ficou mais ágil e menos burocrático.

O presente, sem dúvida, é digital - e o resto é papel passado. Ainda assim, outro dia fiquei um pouco deprimido ao ver na TV a reportagem sobre a digitalização da correspondência do cientista Oswaldo Cruz, que agora está ao alcance do público na internet. É um avanço maravilhoso, reconheço, mas dá uma dor pensar que aqueles registros manuscritos de suas pesquisas profissionais, as cartas amorosas que mandava para a namorada Miloca, os postais que endereçava aos amigos, todos em ótima caligrafia (médico também tem letra bonita), não mais se repetirão com cientistas, intelectuais, homens e mulheres do futuro próximo.

Teremos registros, sim, mas dificilmente voltaremos a ver documentos escritos de próprio punho, seja com garranchos ou letra caprichada. Todos serão digitalizados já na origem, talvez até com aquelas interferências indevidas da tecnologia "inteligente". Posso estar exagerando, mas fiz uma experiência prática que aumentou a minha preocupação. Numa suposição do que pode vir por aí, peguei o início da carta de Pero Vaz de Caminha sobre o descobrimento do Brasil e passei para uma mensagem de WhatsApp só para ver o que o corretor ortográfico poderia fazer com ela.

Original:

Senhor: Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que - para o bem contar e falar - o saiba pior que todos fazer.

Saiu assim:

Senhor, postagem que o capitão-mor desta vossa frita, e assim outrora capítulos escrevam a vossa-alteza a novela do achatamento desta vossa terra nova, querida navegação se Shroeder, não deixarei também de dar dissolução minha conversa a vossa-alteza, assunto comovente Europa ainda que parabéns contar é falar saiba pior que todos fazerem.

Se Caminha tivesse celular, passaríamos o resto dos nossos dias tentando descobrir quem poderia ter sido o tal Shroeder.

NÍLSON SOUZA

Nenhum comentário: