sexta-feira, 18 de agosto de 2023


18 DE AGOSTO DE 2023
CARPINEJAR

O doce das lembranças

A vida é uma caixa de bombons. O que você faz quando recebe a caixinha? Prioriza aqueles de que mais gosta. Você não adia os melhores bombons. Vai cumprindo uma escadinha, uma hierarquia, acabando os prediletos para chegar aos medianos, para, então, doar os que não tem vontade de comer.

Tanto que você somente oferece bombom para os outros quando não há mais nenhum favorito. É a rapa: os chocolates com frutas, aqueles que nem são vendidos isoladamente. No fundo do papelão, sobram os tipos que mais odeia. Deveríamos realizar igual triagem com a nossa rotina. Dar atenção preferencial para as pessoas que amamos, para quem está conosco na saúde e na doença, nas alegrias e nas adversidades.

Mas perdemos a nossa presença renovando a nossa reputação, mantendo as aparências, preocupados com a opinião alheia, entretidos com interações passageiras, com a provisoriedade de estranhos, com as circunstâncias efêmeras de desconhecidos, com laços soltos e rasos.

Deixamos para depois a família. Partimos do princípio de que, por ela nos conhecer, vai perdoar os nossos esquecimentos, relevar a nossa avareza de espaço na agenda, oferecer um desconto para nossa pressa. Nosso instinto de preservação é evitarmos sofrimentos que venham com a intimidade e nos dedicarmos às formalidades da carreira e da subsistência.

Só que muitas vezes pagamos um preço muito alto por não nos envolver: a covardia. O medo de sermos machucados pelos relacionamentos próximos nos incentiva a não nos entregarmos inteiramente a quem nos estima, a quem espera o nosso carinho e carece de nosso olhar protetivo. Filhos são postos de canto, esposa e marido tornam-se secundários, pais são negligenciados nas conversas mais banais.

E podemos arcar com a aplicação do castigo mais grave do egoísmo: envelhecer sozinho. Envelhecer como um bombom negado, de passas, por passar o tempo fugindo de todos que nos prezam, até que eles se cansam de nos procurar e de tentar um contato. Você se isola tanto ao longo das horas que não sobra ninguém ao lado no fim dos seus dias.

Prefiro ter cicatrizes a não contar com experiências reais, momentos marcantes para embalar a memória.

Rascunhos com as nossas garatujas são mais legíveis do que uma folha sem nada. A saudade costuma nos levar às lágrimas. Mas serão lágrimas de tristeza? Acredito que não. São lágrimas de realização, das emoções aprofundadas. A saudade parece triste, mas é feliz. Significa que você viveu, que esteve presente, que tem o que recordar.

Triste mesmo é a culpa, é se arrepender de tudo o que não fez. É uma existência sem recheio, sem alma, sem o doce das lembranças.

CARPINEJAR

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