sábado, 26 de agosto de 2023


26 DE AGOSTO DE 2023
CARPINEJAR

Esse moço!

Eu fico impressionado com a mocidade de Tabajara Ruas, o novo patrono da Feira do Livro de Porto Alegre. Todos de sua geração envelheceram, menos ele. Encontra-se com 81 anos, mas com rosto barbeado e liso de um guri. Pode comparar fotografias dele ao longo da vida. Não há dificuldade para reconhecê-lo. Permanece com um charme imortal, suspeitosamente conservado.

Sei que seu perfume não é formol. Prefere fragrâncias portenhas, amadeiradas. Tampouco fez alguma cirurgia plástica ou botox. É uma jovialidade interior que impacta seus traços. Talvez seja a sua inquietação criativa. Nunca para: ou está filmando, ou está escrevendo, com uma obra que reúne 11 ficções e cinco longas.

Não tenho certeza se é a Câmara Rio-Grandense do Livro que rende homenagem a ele ou se é ele que homenageia a Câmara Rio-Grandense do Livro. O patronato, nesse caso, é uma premiação que parte de ambos os lados. Tabajara tem estatura de clássico, um jovem clássico, um dos nossos maiores romancistas. Suas narrativas já foram leituras obrigatórias (nunca entediantes) do vestibular da UFRGS.

Se Erico Verissimo foi o fundador do romance histórico, Tabajara tornou-se o reformista do gênero. Esmiuçou, exumou, exorcizou a Guerra dos Farrapos, retomando o cenário de O Tempo e o Vento em Os Varões Assinalados.

Quem busca informações de nossa revolta republicana contra o império monárquico, que durou 10 anos (de 1835 a 1845), a mais longa guerra civil brasileira, tem nos olhos de Tabajara os olhos vivos do Tempo. Há o resgate da emoção do entrevero na Ponte da Azenha, do cerco de Porto Alegre, da batalha de Rio Pardo, da reclusão valente da casa das sete mulheres, da travessia dos lanchões, do combate de Ponche Verde e da traição de Porongos.

O que me intriga no meu amigo emprestado - pois ele é antes amigo da família, amigo dos meus pais escritores - é sua aparência intacta em contraste com a sua sabedoria e a sua experiência. Ele mantém igual frescor da época em que o conheci, nos anos 1980, quando veio comer quibe em nossa casa. Já me intrigava o seu indefectível topete.

O topete jamais mudou. Ele sempre tem 20 anos a menos. Não é exagero de minha parte. Deve ter tomado o elixir da juventude em Copenhague, onde já morou. Ou talvez seja um vampiro pampeano, de uma cepa diferente e evoluída. Em vez de sugar o sangue dos outros, ele doa o seu sangue pela literatura e pelo cinema.

Recordo uma cena doméstica que traduz o seu espírito gentil e preocupado com os próximos. São poucos os que entendem de solidão como ele, exilado político nos anos de chumbo, migrando de país a país da América do Sul para fugir da censura e das garras das ditaduras (o espírito da clandestinidade está no enredo de O Amor de Pedro por João).

Ele encarou a minha mãe e falou: - Você deve ser poeta. Minha mãe perguntou: - Por que diz isso? Pela comida?

- Pelo seu silêncio. Silêncios longos são de poetas. Descobrimos que alguém é poeta não por tudo o que fala, mas por tudo o que cala.

Não é que Tabajara tinha razão? Minha mãe acabou publicando seu primeiro livro uma década depois. Os iguais se reconhecem. Acredito que seu comentário incentivou a minha mãe a sair do exílio das gavetas. Nunca me esqueci desse fragmento de menino.

O mais engraçado é que nem Tabajara, nem minha mãe, sequer meu pai se lembram disso. Ainda vão dizer que eu inventei. Guardei essa recordação para devolver agora, batucando numa caixinha de fósforos: "Por meu olhos, por meus sonhos / Por meu sangue, tudo enfim / É que peço a esses moços / Que acreditem em mim".

CARPINEJAR

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