segunda-feira, 14 de agosto de 2023


12/08/2023 - 10h06min
Martha Medeiros

Viver 10 minutos de cada vez é lição para chegar aos cem anos

Fórmula é de um idoso que tem problemas no coração, no pulmão e um câncer em metástase. Aceito o destino com humildade, mas que a noite demore, só preciso de mais 10 minutos

Gilmar Fraga / Agencia RBS

Lição para chegar aos cem anos: viva 10 minutos de cada vez. Quem me passou a fórmula foi um senhor de quase 90 anos, que tem problemas no coração, no pulmão e um câncer em metástase. 

Ignorando os maus prognósticos, ele conta que tem um compromisso sério a cumprir nos próximos 10 minutos: quer escutar de novo Yumeji´s Theme, de Shigeru Umebayashi, trilha sonora do filme Amor à Flor da Pele, que eu também acho a coisa mais linda do mundo, tanto a música quanto o filme. Aquele violino. Aquele andamento melancólico. Vale a pena viver mais 10 minutos para fechar os olhos e ser tocado por tanta beleza.

E então abrir os olhos de novo, porque ainda é cedo para descansar para sempre. Os próximos 10 minutos serão para ver, através da janela, aquela nuvem esquisita se movimentando, parece um peixe. Não, não, agora parece um lírio. Mudou. Agora parece um chapéu. Quem nunca se divertiu, quem nunca riu olhando para o céu?

Quem aguenta viver nessa bolha de falsa perfeição?Quem aguenta viver nessa bolha de falsa perfeição? Pobres, remediados e ricos, cada qual em sua condição, sobrevivem também da sutil presença da belezaPobres, remediados e ricos, cada qual em sua condição, sobrevivem também da sutil presença da beleza

Morrer agora? Não posso. Ganhei de presente um vinho do meu melhor amigo. Ele trouxe de Portugal. Da região do Douro. Eu não sou louco de deixar a garrafa deitada no fundo do armário da cozinha. Contrariando meu médico, vou tomar um cálice. Só um. E continuar sendo louco pela vida, que isso eu sou mesmo. Me dê mais 10 minutos, porque ainda não decorei aquele poema do Affonso Romano de Sant'Ana que diz que certas coisas não se podem deixar para depois.

Aliás, preciso fazer a barba. Não tenho um encontro amoroso esta tarde, não irei a nenhuma festa de aniversário e nem meu filho me buscará para ir ao estádio, mas todas as manhãs eu me encontro comigo diante do espelho e me desejo bom dia. Dez minutos serão suficientes para eu abrir os botões da camisa e expor o meu velho peito ao sol, que bate no sofá em que me sento, exausto.

Não posso ir, não insista. Preciso de mais 10 minutos. É o tempo de encontrar as fotografias amareladas da minha infância, quando meu pai era vivo, minha mãe era moça e meus irmãos e eu tínhamos todos os sonhos dentro dos olhos. As fotos estão em alguma caixa embaixo da cama. Demoro muito para agachar e mais ainda para me levantar, mas elas estão ali. E eu estou aqui ainda.

E então vou comer aquele doce de marzipan que sempre foi meu preferido, desde que eu tinha 30 anos e muita pressa, nem sei de quê. Por que tanto a gente se afoba? Só preciso de 10 minutos agora, para eu assistir minha cena preferida de O Poderoso Chefão, e então fazer a digestão de tudo o que me emociona.

Aceito o destino com humildade, mas que a noite demore, só preciso de mais 10 minutos de Cecília Meirelles, e então mais 10 minutos para um banho quente, e mais 10 para ligar para minha neta, só mais 10 minutos.

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