05 DE AGOSTO DE 2023
CLAUDIA TAJES
Pobre narrativa
Pobre do Parque Harmonia, todo pelado de suas árvores. As fotos em que o verde deu lugar às cicatrizes da terra escavada parecem saídas de algum álbum do passado. Pobre da cidade que ainda acha, em pleno 2023, que trocar o verde por um estacionamento é progresso. Como disse alguém, o som das árvores do Harmonia sendo arrancadas pelas máquinas doía no coração. Cento e três delas já se foram, algumas com a desculpa de que estavam mortas ou definhando. A obra que está exterminando a natureza do parque condenou, no total, 432 árvores. Pelo menos a Justiça interrompeu a matança para pedir explicações, laudos, fundamentos. Antes que seja preciso trocar o nome do parque para Desarmonia.
Nessas todas, não faltou quem dissesse que o arvorecídio era apenas uma questão de narrativa. Hoje é assim, não existem mais problemas, absurdos, descalabros, crimes: existe narrativa.
Pensar que narrativa era uma palavra tão bonita, descrita - aqui, às pressas - como história, conto, série de acontecimentos que se encadeiam para compor um relato de ficção ou não. Com o andar da carruagem, narrativa passou a ser tudo com o que não se concorda.
Ela diz que ele era violento. Ele alega que - apesar dos hematomas - tudo não passa de narrativa. Ele diz que estava sendo assediado moralmente pelo chefe, que argumentou ser essa uma narrativa do funcionário para prejudicar a empresa.
O político diz que as acusações contra ele são uma narrativa covarde, e que vai provar sua inocência. Ainda que cada vez se enrole mais. O motorista do uber, confrontado com dados pró-vacina e pró-urna eletrônica, não deixa por menos: isso daí é narrativa. A mãe ouve do filho de sete anos que volta da escola com um bilhete por bagunça: é narrativa.
A descoberta recente da palavra Narrativa para qualquer coisa conseguiu acabar com toda a beleza dela. Ah, a inigualável narrativa do meu autor preferido. Melhor dizer agora: ah, o inigualável elóquio do meu autor preferido. A inigualável urdidura. O inigualável trololó. Cada um que ache a palavra certa para elogiar o entrecho do seu autor preferido.
Para quem está botando as árvores abaixo no parque Harmonia, a narrativa da preservação não pode impedir a construção de um polo turístico. Narrativa? É mais barato culpar os outros que fazer um projeto que privilegie a natureza. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos para ver em que vai dar isso. Para um leigo palpiteiro, parece compatível erguer um polo turístico sem transformar a área em um deserto. Talvez seja mais caro, talvez esteja aí o X da questão.
Ou o N da narrativa.
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