10 DE AGOSTO DE 2023
CARPINEJAR
O fiado das amizades
O fiado não existe mais no mercadinho, mas ainda vigora nas amizades. Já cometi esse equívoco, já fiz dívidas na reputação assumindo pendências alheias.
Nem é por mal. Você é fisgado pela mania de grandeza, pela vaidade, pela demonstração inadequada de poder. Quer passar a ideia de que é amigo de todo mundo e acaba exagerando no coleguismo indireto e apadrinhando desconhecidos.
É quando você responde a quem entra em contato com você pedindo um favor, usando nome de um amigo: - Se é amigo de fulano, também é meu amigo.
Não é verdade. Você não é um camarote para distribuir pulseiras VIP. Você não é o rei da cocada. Você não é o balcão da Previdência. Você não é um político para ficar constrangido a dizer sim a um eleitor.
Se não abre a porta da sua casa para qualquer um, vive escancarando a porta do seu WhatsApp. Com a maturidade, aprendemos o quanto as amizades são raras e não surgem a cada esquina. São individuais, não se emprestam. Não existe atalho para o afeto. Intimidade é construída lentamente e depende do tempo para se mostrar autêntica e receber o selo azul ou colorado da lealdade verificada.
Até porque você não sabe quais são os termos da amizade paralela para tomá-la como se fosse sua. É o equivalente a honrar um contrato assinado por outro. Você não tem noção se realmente as pessoas se gostam para herdar tal cumplicidade, se são velhas conhecidas ou comadres de ocasião. De repente, mal se conhecem, naquele hábito de declarar que é amigo de alguém para obter algum benefício, para se valer de uma influência e sair da fila.
No novo encontro, é até provável que vocês não apresentem nenhuma compatibilidade, nenhuma afinidade, nenhuma conexão. Não é porque é amigo de seu amigo que será seu amigo. Não acontece transferência automática de dados, não há como partilhar o wi-fi no coração como no celular.
Talvez eles tenham em comum o basquete, e você não joga nem assiste a esse esporte. Talvez sejam solteiros convictos, e você está fora da pista há um bom tempo.
Trata-se de uma mentira educada que pode trazer cobranças.
Há em nossa cultura uma banalização do contato. No livro Raízes do Brasil, o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda avalia nosso comportamento cordial não como uma virtude, e sim como um defeito histórico, um ardil para favorecimentos pessoais. A predisposição para converter conhecidos em súbitos familiares faz com que tenhamos dificuldade de distinguir entre as esferas pública e privada. Incentivam-se a troca de favores, o lobby, os empregos informais apalavrados.
A cordialidade generalizada do brasileiro representa uma ameaça à democracia, posto que as posições ideológicas são suplantadas pela proximidade. É o Quem Indica sendo o nosso único coeficiente intelectual.
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