O barulho da noite
Neste ano, seis longas brasileiros concorreram no Festival de Cinema de Gramado. Três deles receberam Kikitos: Mussum - O Filmis (o grande e merecido vencedor dos troféus principais), Tia Virgínia e Mais Pesado É o Céu. Destes, só assisti ao primeiro, que tem o grande mérito de equilibrar qualidade estética com intensa capacidade de comunicação com o público. Outros três - Ângela, Uma Família Feliz e O Barulho da Noite - passaram em branco na premiação.
Como é óbvio, cada espectador tem sua própria maneira de avaliar e comparar os filmes. Na minha opinião, um dos melhores filmes do festival foi O Barulho da Noite, uma produção vinda do Tocantins, com roteiro e direção de Eva Pereira. Ficou sem Kikito, mas isso não significa que seja carente de méritos cinematográficos. Por isso, em vez de falar dos vencedores, que ficam sob os holofotes da mídia, falo de quem corre o risco de ver suas qualidades esquecidas.
A temática é muito importante e atual, mesmo que dolorosa: a imensa quantidade de estupros no Brasil, uma verdadeira epidemia social. Em sua maioria, as violações acontecem no ambiente doméstico. Eva Pereira conta a história de uma família de agricultores que vive isolada numa região perdida entre os Estados de Tocantins e Maranhão.
O pai (interpretado por Marcos Palmeira), a mãe (Emanuelle Araújo) e duas crianças pequenas (Alícia Santana e Anna Alice Dias) têm seu cotidiano brutalmente modificado quando o chefe da família se ausenta para participar da Folia do Divino. As atuações de Marcos e Emanuelle são intensas e muito verossímeis. As duas crianças superaram o imenso desafio que tinham pela frente e conseguem emocionar.
Estes personagens estão num Brasil rural que nada tem a ver com o agronegócio e o sertanejo universitário. A solidão, a casa humilde e os poucos recursos financeiros deslocam-nos para um outro tempo, quase medieval, em que o Estado inexiste, e talvez por isso a religião assuma um papel tão decisivo. A trilha da baiana Emanuelle Araújo, que integrou a banda Eva, é delicada e dialoga competentemente com a dramaturgia.
O filme constrói aos poucos um clima sufocante e quase insuportável. Em dado momento, é possível intuir a tragédia que acontecerá, mas ela é tão terrível que é melhor negá-la, tanto que ações importantes acontecem longe da câmera. Contudo, a história está contada. Cabe a cada espectador refletir sobre uma realidade muito indigesta. E cabe ao governo, em suas diferentes instâncias - municipal, estadual e federal - ser mais vigilante e mais ativo na defesa das mulheres e crianças brasileiras.
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