O triste fim da verdade
Eram 11 da noite quando me deitei na cama com um livro nas mãos, mas o celular apitou. Resolvi conferir. Um SMS comunicava uma compra em dólares supostamente feita por mim. Valor alto. Em seguida, a mensagem de estorno. Alívio, já que não fiz compra alguma. No instante seguinte, outra mensagem de compra aprovada, valor mais alto ainda. E logo a mensagem de estorno, novamente. Alguém não estava dando sorte ao utilizar meu cartão.
Fosse um tempo atrás, seria o suficiente para acabar com meu sono. Sairia de pijama e acamparia na frente do banco. Porém, quem não se acostuma com tentativas de golpe, não dorme mais. Na manhã seguinte, a primeira chamada recebida foi de um número desconhecido do interior de São Paulo. Normal. Não atendi e fui tomar café.
Não sou tão esperta, já perdi dinheiro em golpes fajutos, quando ainda me permitia ser inocente. Hoje, inocência virou defeito de caráter. É outro mundo. Nada mais é o que parece ser. A verdade caiu para a segunda divisão. A verdade despencou no ranking. A verdade teve queda violenta na Bolsa. A verdade foi expulsa de casa. Não está mais aqui quem falou. A mentira é a nova dona do pedaço.
Pessoas abrem conta em clínicas de estética e acabam com os vestígios do próprio rosto: não está me reconhecendo? Pessoas postam fotos com bebês que nunca tiveram. Pessoas abusam de filtros na hora de gravar vídeos glorificando o envelhecimento.
Pessoas manipulam com deep fakes: faz de conta que aquele presidente anunciou rendição, que aquele outro foi algemado, que o Papa dançou uma rumba dentro de uma pizzaria, que uma onda gigante encobriu Ipanema, que o avião se desintegrou no ar, que havia dois milhões de manifestantes na passeata - efeitos especiais 24 horas por dia na palma da sua mão. Jornais? Ainda são feitos por gente, não robôs. Não é de admirar que estejam perdendo leitores. A verdade, que nos libertaria, agora só conduz à uma vida sem emoção.
Notícias exageradas, números maquiados, falas editadas, aspas fora do contexto, falsos perfis, invenções, boatos, má-fé: viva la vida loca. Fatos não confirmados são espalhados em segundos e as opiniões são formatadas assim, apressadamente. Se o que foi lido nas redes agrada, mesmo tendo jeito de empulhação, para quê checar e correr o risco de descobrir que está sendo enganado? A inexatidão é a nova verdade.
História, conhecimento, biografia, quase mais nada disso serve de base, o que importa é sensacionalizar, que se danem as consequências. Na arte ainda se acredita, mas nem tanto no direito autoral. Quem garante que não foi o Neruda que escreveu este texto, com a ajuda da inteligência artificial?
Verdadeiro ou falso? Pergunta boba. Não existe mais resposta certa.
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