03 de setembro de 2014 | N°
17911
MARTHA MEDEIROS
Ignorância
É comum chamar de ignorante
aquela pessoa que não sabe ler nem escrever. Porém, esses são analfabetos, não
ignorantes. A ignorância ultrapassa as questões escolares.
Qualquer pessoa que durante sua
criação não tenha tido algum acesso à arte de boa qualidade, a noções mínimas
de filosofia e psicologia, à literatura, à informação, à música e,
principalmente, à ética e ao afeto, arranca em desvantagem. Pode conseguir se
formar, virar bacharel, doutor, mas permanecerá endurecido por um mundo
estreito, terá dificuldade de dialogar. Abandonado pela falta de critério, de
instrução e de conhecimento, viverá bitolado como um selvagem. Não conseguirá
enxergar o mundo de forma generosa, apenas rosnará para espantar o próprio
vazio.
Como você deve ter adivinhado,
isso nos leva ao menino Bernardo. Não preciso descrever o que senti ao ler a
transcrição dos diálogos gravados dentro daquela casa em Três Passos – você
sentiu o mesmo. É desolador. Leandro e Graciele, que em tese eram responsáveis
pelo garoto, são dois débeis sem consciência do que suas atitudes provocavam.
Mesmo que Bernardo fosse uma peste, era uma criança. Uma criança! A covardia
psicológica que sofreu é diabólica.
O desfecho do caso foi uma
exceção – raros sãos os pais que matam filhos ou enteados. Porém, se os
assassinos são poucos, os ignorantes proliferam em todos os bairros, em todas
as classes sociais: inúmeros homens e mulheres simplesmente não zelam pela
cabeça dos filhos.
Ensinam a escovar os dentes, a
dizer obrigado, matriculam numa escola e tarefa cumprida. São tão ignorantes
que muitos fazem uma brincadeira considerada “didática”: estimulam o filho a se
jogar de cima de um armário garantindo que o segurarão nos braços. E seguram.
Seguram na primeira vez, na segunda, na terceira, até que na próxima a criança
se joga e o pai o deixa se esborrachar no chão, justificando-se com a pérola:
“É pra você aprender a nunca confiar em ninguém – nem em mim”.
Que cretinice. Crianças precisam
aprender a confiar, não a desconfiar. Crianças precisam ter seus afetos
respeitados, e não ouvir que a mãe e o pai que amam são vagabundos – mesmo que
sejam. É preciso garantir a sanidade mental de uma criaturinha em formação,
usar palavras amáveis, não destruir seus sonhos, dizer a verdade com jeito, não
estimular a competição, não fazê-la se sentir desprotegida, não tratá-la com
grossura, não obrigá-la a se posicionar como um adulto antes da hora. Tudo isso
também é violência.
Custaremos a ver outro
assassinato hediondo como esse, mas crianças sofrendo agressões pesadas
continuarão a existir. Elas não morrerão, mas crescerão com transtornos
emocionais e um dia criarão seus próprios filhos de que maneira? Com o padrão
miserável que vivenciaram.
Para evitar que crianças se
esborrachem no chão e na vida, para fazê-las confiar em si mesmas e no mundo,
só combatendo a ignorância.
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