21
de setembro de 2014 | N° 17929
CÓDIGO
DAVID | David Coimbra
Era só um
pardal
Vinha
caminhando pelo bulício do centro de Boston e vi um ajuntamento. Seis ou sete
pessoas em roda, olhando para baixo, para algo na calçada. A cena deu uma
espetada na minha curiosidade. O que seria? Parei. Fui lá.
Era
um passarinho.
Um
pardal vulgar, cinzento, desses que pousam em todos os cinamomos de Porto
Alegre, que são encontrados em qualquer cidade do mundo, seja em meio aos
pombos da Praça de São Marcos, em Veneza, seja debaixo do grande cartaz do Mao,
em Pequim. Devia estar passando por alguma dificuldade, o pardal, porque
pardais não ficam parados para que pessoas os contemplem em roda, pardais, no
máximo, podem colher uma migalha de alimento de uma mão humana e logo alçam voo
preventivo para o galho mais seguro.
Um pardal
com problemas de saúde, era o que havia ali. E os humanos em volta discutiam
vivamente, em bom inglês bostoniano, o que fazer dele. Não fiquei para
descobrir a que conclusão chegaram, tinha lá meus compromissos. Mas segui
caminho intrigado com o interesse dos americanos pelo pardal, e perplexo com
minha própria insensibilidade aviária.
Tenho
a maior simpatia pelos pardais, esses sobreviventes da urbe, esses personagens
quase invisíveis do asfalto duro, mas não sei se participaria de um seminário
para decidir o futuro de um deles, como faziam os bostonianos. Um gato ou um
cachorro, talvez; um canarinho amarelo-vivo, certamente; mas um pardal...
Realmente, não sei se um pardal ganharia 15 minutos do meu dia. Por isso,
admirei aqueles americanos. Estavam me dando uma lição.
Será
que os new yorkers fariam o mesmo? Nova York tem lá suas selvagerias. Você
passa um tempo em Boston e, quando vai a Nova York, se espanta com a sujeira,
por exemplo. Há ratos do tamanho de um gato, em Nova York. Tantos ratos, que
alguns nova-iorquinos saem à noite com seus cães, a fim de caçá-los.
Mandaram-me um filme em que uma dessas ratazanas gigantes é a protagonista. Ela
passeava preguiçosamente pela fachada de um edifício, meio desafiadora. Tinha o
rabo da grossura de uma mangueira de jardim e era gorda como um pequeno leitão.
Um troço assustador.
O
trânsito da Big Apple também não tem nada da paciência civilizatória dos
motoristas da Nova Inglaterra. Outra noite, eu e a Marcinha fomos a um lugar
muito bom chamado Minetta Tavern, recomendo vivamente para você que está vindo
a NY. Estávamos em meio à animação do Green Village, já próximos da dita
taverna, quando um carro parou na frente do nosso táxi, fechando a rua. Dele
desceu uma moça de minissaia curtíssima e pernas longuíssimas. Ela saiu
ondulando pela calçada, enquanto o motorista do táxi abriu a janela e reclamou
em tom nada amigável. Sem nem se virar, a menina ergueu o dedo médio, mostrou-o
para o taxista e se foi, rindo com todos os seus dentes alvíssimos faiscando na
noite, sempre com aquele dedo em riste, enquanto o motorista desfiava palavrões
na língua de Shakespeare. Olhei para a Marcinha e comentei, não sem antes fazer
um entediado tsc-tsc:
– Na
nossa Boston isso nunca aconteceria...
Lembro
de uma cena do grande filme Perdidos na Noite em que o caubói interpretado pelo
Jon Voight, ator também conhecido pelo título de
O-Homem-Que-Gerou-Angelina-Jolie, caminha por Nova York, acho que pela 5ª
Avenida, e vê um sujeito caído na calçada. O homem deitado está de paletó, bem
vestido, não parece um mendigo. Jon Voight se detém um segundo, olha, hesita,
está prestes a se agachar para ajudá-lo, mas as centenas de passantes ao redor
fazem o que em geral fazem passantes: passam. E nem sequer olham para o corpo
estendido no chão. Voight, então, desiste de se deter e também segue seu rumo.
Se
nova-iorquinos não ligam para um semelhante em apuros, por que se abalariam por
um insignificante pardal? Se bem que aqueles eram nova-iorquinos dos anos 70.
Nova York mudou, desde então. Tornou-se uma cidade menos violenta e, com menos
violência, tornou-se mais calma, as pessoas passaram a reparar mais nas outras
pessoas, o que não deixa de ser uma mensagem para nós, brasileiros: a violência
embrutece a todos, mesmo os que só tomam conhecimento dela de ouvir falar e por
notícia de jornal.
Assim,
fico aqui com minha angústia: um pardal combalido terá chance de sobrevivência
na cidade que nunca dorme? E no avesso do avesso do avesso do avesso? E na
cidade maravilhosa? E naquela cidade que um dia foi chamada de “Cidade Sorriso”
e que hoje não sorri mais, vive tensa por ataques de sequestradores de semáforo
e flanelinhas riscadores de carro? Eis aí uma medida de humanidade, uma medida
de civilização. Como queria, um dia, me tornar tão humano a ponto de mudar meu
dia por um pardal ferido.
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