21
de setembro de 2014 | N° 17929
L.
F. VERISSIMO
Maus modos
Se
fossem os índios que tivessem desembarcado em Portugal e ficado, pode-se
imaginar o que estaria acontecendo por lá hoje, 500 anos depois. A irritação
dos portugueses com os visitantes teria chegado ao máximo, e ninguém
disfarçaria seu descontentamento. “Mas esses gajos não vão embora?” Passados
500 anos, e não havendo mais dúvidas de que os visitantes não eram turistas, só
a boa educação explicaria que a visita se prolongasse sem protestos, sem
nenhuma indireta.
Foi
a boa educação dos nativos daqui que permitiu aos portugueses e outros europeus
se estabelecerem no Brasil. Houve revoltas esparsas, é verdade, mas foram
exceções. Em geral, os índios foram amáveis com os visitantes. Gostaram dos
brancos e até comeram alguns, no que podem ser descritas como provas de afeição
extrema.
É
possível que a tolerância com os “descobridores” se devesse a, mais do que bons
modos, um mal-entendido. Haveria a expectativa entre os nativos de que os
portugueses cedo ou tarde iriam embora. Quem fica na terra dos outros durante
tanto tempo sem ser convidado?
O
mal-entendido e os bons modos atravessaram a história da conquista do Novo
Mundo, que só era novo para os conquistadores, pois estava aqui, e habitado, há
séculos. Roubo, genocídio, catequese forçada, tudo teria sido tolerado com o
pressuposto de que era temporário. Afinal, por pior que uma visita se comporte
em sua casa, existem os deveres da hospitalidade. Vá que a visita se sinta
ofendida por alguma reação impensada e decida ficar ainda mais tempo.
Finalmente,
500 e tantos anos depois, não parece haver mais dúvida de que não era apenas
uma visita e os invasores não eram turistas. Acabou o mal-entendido e acabaram
os bons modos. A nova insubmissão às mentiras da História oficial é uma
insubmissão a todas as versões oficiais de todas as histórias de subjugação e
exploração neste lado do mundo e serve como padrão para a revolta contra
qualquer tipo de “bullshit”, ou bosta de touro, vigente, como a da nossa velha
e conveniente cordialidade e nossa harmonia racial.
Negros
brasileiros – para pegar apenas um exemplo de maus modos – se revoltam contra
antigos estereótipos, levantam a voz contra uma história decididamente
malcontada e pedem justiça mesmo que tardia. Já os índios, se pudessem,
proporiam aos portugueses devolver os espelhinhos e as miçangas e receber de
volta o Brasil. Mas isso seria, literalmente, pedir demais.
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