WALCYR
CARRASCO
16/09/2014
07h00 - Atualizado em 16/09/2014 08h55
O amor é interesseiro
Estou
aqui, com mais de 60, há alguns anos sozinho e me considero, enfim, na roda. E
daí?
Amar
é difícil. Principalmente, porque a gente costuma se apaixonar por alguém que não
existe e coloca todas as expectativas na primeira pessoa que aparece pela
frente. Bastam alguns miados e pronto – já se fala em amor, em compromisso e
relação. Você e eu somos românticos, apesar de todos os ossos que tivemos de
roer na vida. Acreditamos naquele amor puro, translúcido como um cristal. Ah,
meu Deus, será que algum dia existiu? Só se for na imaginação dos escritores
românticos.
Mesmo
um grande autor de livros românticos como Machado de Assis a certa altura mudou
de gênero. Tornou-se realista e criou uma suspeita Capitu, que ninguém nunca
saberá ao certo se traiu – nem mesmo seu sofrido marido, Bentinho. O que terá feito
Machado de Assis tornar-se realista? Talvez tenha descoberto que o amor não é um
sentimento único como um vaso de alabastro, mas um conjunto de sensações e,
sim, interesses.
Estou
aqui, com mais de 60, há alguns anos sozinho e me considero, enfim, na roda. Sempre
ouço perguntas, se tento um novo relacionamento.
– O
interesse não é porque você é autor de televisão? – Tem certeza de que não é pela
grana? – Será que gostam de você por você mesmo?
Aí me
faço a pergunta: quem sou eu mesmo? Que identidade é essa, única, inexplicável,
que define uma pessoa? A alma? Mas alguém está habilitado a decifrar minha
alma? Sinceramente, nem eu! Meu corpo? Uau! Depois dos 60, é preciso ser
sincero consigo mesmo. Não ganharei mais o título de Mr. Brasil, não serei
campeão de natação, muito menos terei barriguinha de tanque. Posso fazer um
esforço para não me tornar um barril, mas é isso aí. “Eu mesmo” é uma entidade
que não existe de modo absoluto. E se fosse mendigo e pedisse esmola nas ruas?
Seria “eu mesmo”? Em tese, continuaria a mesma pessoa. Mas meus sentimentos,
raivas, aparência física seriam bem diferentes. Talvez me apaixonasse por alguém
que me oferecesse um prato de macarrão. Perdidamente! Sim, poderia continuar a
ser um sujeito sensível.
Mas
alguém descobriria, se eu catasse lata pela rua? E se tivesse seguido uma de
minhas outras vocações e fosse pesquisador de biologia, área que amo? Ou
historiador (cheguei a cursar até o 3o ano da faculdade de história da USP)?
Meus papos seriam outros, minhas companhias também, talvez até meus dentes. As
possíveis vidas que poderia ter tido (um acidente, uma deficiência também
contam) me levariam a diferenças na forma de ser. Talvez nem sorrisse – mas
grunhisse diante de uma existência malévola. Não seria esse “eu mesmo” que sou
agora. Recentemente, um ator famoso, com mais de 80, casado com uma moça na
casa dos 20, rebateu as críticas:
– Ela
cuida de mim agora. Quando me for, cuidarei dela.
Sim,
ela pode ter interesse na herança. E daí, se proporciona uma vida agradável a
seu velhinho? Conheci uma mulher de família rica que, depois de dois maridos,
casou-se com o personal trainer. Um cara ótimo. Ajuda com os filhos dela, nos
cuidados da casa, tudo. Aceita alegremente os luxos que ela proporciona. Ouvi
muitas críticas ao rapaz. Mas quem é o interesseiro? Ele no dinheiro dela? Ou
ela em seu corpo jovem, musculoso e na dedicação? Para mim, é apenas uma troca
justa. A gente costuma ser dramático e achar que, um dia, ela aparecerá estrangulada,
enquanto ele foge com as joias. Na maioria dos casos, não é o que acontece. Eles
vivem a relação, sentem-se felizes, e acham que isso é amor.
Fui
criado para acreditar no sentimento avassalador, do príncipe que dança com
Cinderela e se apaixona perdidamente. Bem, vamos combinar, Cinderela era
interesseira. Nem conhecia o rapaz, mas, já que era príncipe e tinha castelo,
casou. O príncipe provavelmente era podólatra, pois saiu de sapatinho na mão,
em busca do pezinho da moça. Não importavam o rosto, os cabelos cheios de
cinzas e gravetos, nada. Só o pezinho. Não diz a lenda que foram felizes para
sempre?
Meses
atrás, um amigo diretor, já bem maduro, saía com uma moça lindíssima, cobiçada
pelo país todo. Perguntei:
– Mas
ela gosta de você?
Ele
respondeu, sábio: – Sabe, sou um pacote. Do pacote, ela gosta sim.
Nunca
ouvi maior verdade. Sou um pacote, você provavelmente também é. É esse o grande
segredo do amor. Não é uma coisa única, quase uma entidade que nos possui. Mas
um belo pacote, bom de desembrulhar.
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