13
de setembro de 2014 | N° 17921
PALAVRA
DE MÉDICO | J.J. CAMARGO
A HUMILHAÇÃO
O
Walter jogou bola durante a juventude na Paraíba e, quando mudou para o Rio de
Janeiro, limitado por uma lesão recorrente de menisco, aderiu ao remo, no qual
encontrou uma paixão que o acompanhou por quase 30 anos. No final dos anos
1990, o tabagismo pesado, um hábito que sempre contrastou com uma vida atlética
e regrada, começou a cobrar seu preço. O passo encurtou, as vitrines se
tornaram escalas obrigatórias de descanso, o banho deixou de ser relaxante para
se tornar um martírio ensaboado e o sexo foi arquivado no memorial.
A
constatação de que a cada semestre as limitações se multiplicavam serviu para
minar sua autoestima e restringir o círculo de amigos, que não conseguiam
dissimular que aquele ex-atleta se tornara, por contingências, um ex-parceiro.
Advogado antes requisitado, passou a transferir trabalho e a abrir mão de casos
mais complicados por cansaço antecipado, única certeza que lhe assegurava o
peito arfante ao menor esforço.
Recluso
numa mansão espetacular, acelerou o hábito da leitura, único veículo capaz de
transportá-lo para os lugares que fantasiasse, aliviado por descobrir que a
imaginação não usava oxigênio como combustível.
Em um
passeio despretensioso pela internet, deparou com um site que apresentava o
transplante de pulmão como uma alternativa promissora para as pneumopatias
terminais e, entre essas, o enfisema pulmonar, a indicação mais frequente. Esse
dia passaria a ser referido no futuro como o da iluminação.
Uma
semana depois, com uma sacola de oxigênio a tiracolo, e um enorme esforço para
disfarçar a ofegância agravada pela ansiedade, ele sentou a minha frente para
ouvir o que fosse. Segundo confessou depois, precisava dar um fim àquela
angústia despertada pela possibilidade, por mais remota que parecesse, de
acabar com o martírio. Por bem ou por mal. O lábio tremia quando me confessou o
quanto receava que aquela luz no fim do túnel fosse só o olho dele brilhando.
Poucos
pacientes se esforçaram tanto para lograr a melhor condição pré-transplante, e
não lembro ninguém que tenha recebido a notícia de um doador compatível com
tanta naturalidade.
No
pós-operatório, deslumbrou-se com a recuperação de um fôlego que nem lembrava
mais pudesse ser tão leve e solto, confirmando que o sofrimento arrastado
durante anos, e subitamente varrido pelo transplante, produz um dos pacientes
mais felizes e agradecidos que a medicina moderna possa forjar.
Às
vésperas de ir embora, eu quis saber quais os seus planos futuros e cheguei a
sugerir que, na condição dele, eu provavelmente sairia pelo mundo a recuperar o
tempo perdido.
“Acontece
que ainda não estou pronto para esta comemoração. Para recomeçar minha vida,
preciso recuperar minha autoestima, e ela foi atropelada lá no Rio, onde
aceitei alguns acordos vis, submetido à fraqueza de não ter fôlego para
argumentar. Acredite, doutor, essa é a maior humilhação a que se submetem os
que têm falta de ar. O homem que preciso voltar a ser está soterrado por uns 16
pactos desfavoráveis que o miserável enfisema me impôs. Depois desse resgate,
talvez eu viaje. E, então, para fora de mim!”
Havia
uma certa gana naquela frase final. E justo na dose que torna doce a vingança.
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