sábado, 6 de setembro de 2014


07 de setembro de 2014 | N° 17915
MOISÉS MENDES

O futebol sem povo

Em tempos de racismo, uma historinha de colégio. No início do século 19, a Inglaterra deflagrou uma guerra contra os navios negreiros. O Brasil foi um dos alvos.

Os ingleses haviam abolido a escravidão em suas colônias em 1833 e passaram a tentar impor leis contra o tráfico em outros países.

Nesse embate mais econômico do que humanista, chegaram a invadir o mar brasileiro, atacando e se apoderando de navios com africanos.

A pressão era tanta que o Brasil simulou leis em obediência à campanha inglesa. Dizem que vem daí a expressão “para inglês ver”. As leis não tinham efeito, e traficantes e escravistas continuavam negociando gente.

O julgamento que condenou o Grêmio, no caso do insulto racista, é para inglês ver. Há punição exemplar contra todos, clube e torcedores. O Superior Tribunal de Justiça Desportiva tinha que ser rigoroso e jogou para os ingleses.

Todos nós, os que esperamos que um dia o racismo seja afastado dos estádios, como os que torciam pelo fim da escravidão, somos os ingleses dessa história, dois séculos depois. Cobramos punição, e a punição veio da forma mais burra possível.

Torcidas não são categorias sociais, não são instituições, nem um mundo à parte. O que aconteceu é que grupos de pessoas estúpidas, organizadas ou avulsas, que eventualmente se misturam, ganharam um poder paralelo ao dos clubes no futebol.

São eles que vão continuar gritando macaco, nem tanto por serem racistas, mas por serem estúpidos. Torcidas são expressões de quem vai e de quem não vai a campo. O futebol é só o reduto onde fermenta a idiotização.

E essa não é uma questão a ser resolvida só pela Justiça desportiva. É um desafio para o que de forma ampla e genérica chamamos de sociedade. Mas aí são outros quinhentos.

O futebol pode ter sido sequestrado pelos bárbaros no momento em que retiraram o povo dos estádios para dar lugar a um contingente de classe média sem referências e sem limites.

É a maior punição para os clubes. Parte dos torcedores escolhidos pelos próprios clubes como público das arenas ameaça inviabilizar os espetáculos.

A solução? Copiar, como já tentam, algumas coisas do que os ingleses fizeram contra os hooligans, punir exemplar e didaticamente os racistas e quadrilheiros (e os clubes), dar protagonismo ao MP e à Justiça. Tudo previsível.

Daqui a alguns dias, centenas voltarão a gritar macaco. E mais um clube será punido. Os ingleses pedirão mais punição. E assim teremos penas que, levadas a sério, fecharão os clubes.

Enquanto isso, bandidos e estúpidos continuarão agindo, nos estádios, nas ruas, depois dos jogos, nas redes sociais.


A saída talvez seja improvável: acolher de volta o povão nos estádios, resgatando um poder moderador moral que está na origem do futebol e que os clubes largaram pelo caminho. Ou dirão que não temos mais nem o povão?

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