21
de setembro de 2014 | N° 17929
ANTONIO
PRATA
Garagem
Sempre achei acordar um negócio terrível. Seja
cutucado pela luz ou estapeado pelo despertador, abro os olhos com um profundo
sentimento de injustiça: por que já?! Por que eu?! Tende piedade, Senhor,
dai-me mais cinco minutinhos – e abençoai, se tiverdes tempo, o inventor da
“Função Soneca”.
Quando
eu era adolescente, pensava que o problema fosse a escola. Afinal, quem quer
sair da cama às 6h da madrugada pra estudar adjuntos adnominais e
alcalino-terrosos? (Melhor ficar adjunto do travesseiro, como que embalado por
alcaloides-celestiais.)
Anos
mais tarde, já livre da gramática e da tabela periódica, passei a achar que o
sofrimento viesse dos freelas chatos que eu tinha que encarar, logo depois do
café: um capítulo sobre sustentabilidade na produção de celulose pro livro
comemorativo de vinte anos de uma fábrica de guardanapos; a matéria 10
programas nota 10 neste Dia das Crianças, pra revista Kids; a revisão dos
textos publicitários a serem estampados sobre a imagem de crianças loiras
correndo num parque, no fundo de uma caixa de cereais – “Funflakes é pura
diversão!”.
Agora,
porém, virando de um lado pro outro na cama, dividido entre a preguiça e a
culpa, tento amaldiçoar alguma tarefa enfadonha que supostamente me aguarda na
primeira esquina depois da escova de dentes, mas não encontro nada horroroso
por lá. Hoje é quinta, dia de escrever a crônica. Gosto de escrever a crônica.
Da
sala, vêm os gritinhos da minha filha. Tenho saúde, amor, amigos, uma
churrasqueira e, além de tudo, faz sol lá fora, esse sol da primavera que não
está aí para solapar ninguém, mas para deixar o céu mais azul e a grama mais
verde, como no parque em que corriam as crianças loiras, na caixa de
“Funflakes”. Acordar, no entanto, não é “pura diversão!”: acordar continua
sendo um saco.
Sei
que reclamo de barriga cheia. 99% da humanidade desperta pra vidas bem piores
que a minha. Passam os dias a apertar parafusos, cruzam montanhas atrás de
água, fogem de balas e leões. Um terremoto na Conchinchina, contudo, não nos
impede de reclamar da nossa dor de dente. Acordar é a minha dor de dente.
Olha,
eu não faço o tipo blasé, que se arrasta por aí com a cabeça baixa e um olhar
superior, como se a inteligência levasse inevitavelmente ao niilismo e o
comentário mais sagaz sobre a existência fosse o bocejo. Desconfio desses
tipos, aliás: acho que o que move essas casmurrices é muito menos um arraigado
ceticismo do que um apurado senso estético. “um homem com uma dor”, escreveu
Leminski, “é muito mais elegante/ caminha assim de lado/ como se chegando
atrasado/ andasse mais adiante”.). Não, não faço esse tipo. Uma vez acordado e
de banho tomado, existir me parece um programa bem razoável. O meu problema não
é no carburador, é no motor de arranque.
Pensando
bem, não há nada de estranho nisso. Sou um carro a álcool do fim dos anos
setenta. Antes de ir pra rua, tenho que ficar um tempo na garagem, esquentando.
Sou um velho Passat verde. Não, Passat é muita presunção, sou uma Brasília, uma
velha Brasília bordô. Talvez escreva sobre isso, mais tarde. Mais tarde: agora,
aperto a “Função Soneca” do despertador e viro de lado, agradecendo ao Senhor
por mais cinco minutinhos nas brumas dessa garagem.
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