21
de setembro de 2014 | N° 17929
MARTHA
MEDEIROS
Obrigação
Uma pesquisa revelou que 61% dos eleitores rejeitam a
obrigatoriedade do voto. A desilusão com a política é apontada como um dos
motivos. Sendo o voto um instrumento de transformação, eu jamais abriria mão
dele, mesmo que fosse opcional, mas concordo: quem dera todos votassem por
consciência em vez de fazerem uni-duni-tê em frente à urna apenas por dever
cívico. Obrigação é uma palavra que me arrepia. Desde garota. Passei a infância
desejando crescer porque intuía que a espontaneidade vivia no lado maduro da
existência.
Sei
que cada criança processa os ensinamentos que recebe através de um código muito
particular, mas o fato é que eu me sentia numa camisa de força. Horário de ir
para cama, ter que raspar o prato mesmo estando sem fome, a televisão
racionada, o dever de só tirar notas boas. Obrigações que resultaram numa
mulher responsável e bem-criada, ao contrário de tantas outras crianças que
fazem o que bem entendem e viram adultos mimados e despreparados para lidar com
frustrações. Só que, aos oito anos de idade, eu não sabia nada sobre pedagogia.
A teoria sobre criação de filhos não fazia parte do meu repertório. Eu só sabia
das minhas vontades. Eu queria ser livre porque me parecia o único jeito de ser
honesta com meus sentimentos e pensamentos.
Não
queria fazer nada por obrigação. Nem comer, nem dormir, nem ser feliz por
obrigação. Considerava uma violência quando, ao perguntar aos adultos “por que
desse jeito?”, ouvia como resposta “porque sim e pronto” ou “porque é assim que
tem que ser”.
Obedecia
militarmente “a hora certa” de fazer as coisas como se houvesse um relógio
universal regendo uma orquestra de bons moços a serviço do andamento do
espetáculo. Não que me fosse custoso cumprir. Só era custoso entender.
Pior
do que me comportar como “todo mundo” era viver uma afetividade também regida
por regras. Não parecia que as pessoas se encontravam por saudades, por
afinidades ou para repartir calor humano. Parecia obrigação também. A obrigação
das datas festivas. A obrigação dos domingos. A obrigação dos parentescos.
Ai
de mim se gostasse mais de uma avó do que de outra. Ou se não quisesse sair do
quarto para jantar. Ou se me recusasse a ir à missa. Ao colégio eu sabia que
tinha que ir, não questionava. Só questionava o que me parecia facultativo.
Apesar
dos meus “facultativos” não baterem com os dos meus pais, optei por não dar
trabalho, segui a cartilha da boa menina. Fiz minha parte e eles a deles –
benfeita, diga-se, ou não seria quem sou.
Mas
quem eu sou mesmo? Cumpridora, pontual, educada, porém, hoje, profundamente
intolerante a tudo o que não for espontâneo, ao teatro das convenções, às
blindagens contra a intimidade, ao que serve apenas para manter a orquestra
tocando.
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