sábado, 6 de setembro de 2014


07 de setembro de 2014 | N° 17915
CÓDIGO DAVID | David Coimbra

OS XIS DA HISTÓRIA

O Potter e a Marcella estão desfrutando de um período sabático em Nova York. Feéricos musicais na Broadway, sinuosas noites de blues no Soho, sebos com 18 milhas de livros enfileirados, eles se besuntam todos os dias nas amenidades da capital do mundo. Trata-se de um casal cultural, um casal internacional. De fato.

Bem. Eu, a Marcinha e o B saímos da tranquilidade aristocrática de Boston e fomos ter alguns dias com eles na cidade que nunca dorme. Já na primeira noite, decidimos ir ao P.J. Clarke’s, um clássico de Manhattan que era frequentado por tipos como Frank Sinatra e Jacqueline Kennedy. Trinchando um cheeseburger do lugar, Nat King Cole proferiu, com sua voz de metal e mel:

– Esse é o Cadillac dos hambúrgueres.

Uau! Eu tinha que comer aquele hambúrguer!

Então, nos aboletamos numa das velhas mesas do fundo do bar, pedimos nossos burgers, nossas cervejas Blue Moon e sorrimos satisfeitos uns para os outros, até que o Potter ergueu a cabeça para a garçonete e perguntou:

– Plis: qual é a diferença entre cheeseburger e hamburger?

E a moça, numa única palavra, dirimiu suas dúvidas e seu orgulho:

– Cheese...

O Potter olhou para nós, desolado:

– Acabei de fazer a pergunta mais imbecil da história dos Estados Unidos...

Balancei a cabeça:

– Tu não imagina a quantidade de imbecilidades que já disse na vida.

De qualquer forma, os cheeses do Clarke’s, todos devidamente com queijo, provaram merecer a fama de que gozam. Deliciosos. Crocantes nos lugares em que tinham de ser crocantes, macios onde deviam ser macios. Lembrei-me do tempo em que era adepto desse gênero de lanche. Na verdade, preferia os cachorros-quentes em geral e os do Rosário em especial, com seu molho misterioso, duas, quiçá três salsichas e todos os temperos possíveis dentro.

O Diogo Olivier, que estudou no Rosário, orgulhava-se de dominar uma técnica de comer aquele cachorro-quente sem que uma só gota de molho lhe enodoasse a camisa e sem deixar cair uma única ervilha nas lajes da Praça São Sebastião. Nunca consegui isso. Jamais fui capaz de comer um cachorro-quente, qualquer cachorro-quente, sem me lambuzar.

Quando tinha uns 10 anos de idade, lembro de ter lido sobre o bilionário americano Howard Hughes, que, além de apaixonado pela Ava Gardner, por verdes dólares e por aviões, era maníaco por limpeza. Não admitia nada que fosse remotamente sujo perto dele, assim como o Roberto Carlos não admite nada que tenha cor marrom. Meu comentário na época foi:

– Mas então ele não come cachorro-quente???

Para mim, comer cachorro-quente era a felicidade. A felicidade, realmente, pode ser simples.

Muitas madrugadas acabei no Plutão ou no Zé do Passaporte, em busca de um cachorro-quente restaurador, a fim de nocautear alguma fome tardia.

Meu amigo Chico Trago estava certa feita sentado num banco do Zé do Passaporte, ombreado por outros dois amigos, os três empunhando seus cachorros-quentes. O amigo à esquerda do Chico deu uma dentada mais voraz no seu, mas pegou só a ponta do pão, impulsionando a salsicha agressivamente para fora.

Foi tão poderosa a mordida que a salsicha voou feito um pequeno foguete avermelhado, passando diante dos olhos incrédulos do meu amigo Chico Trago justamente quando ele abria a boca para abocanhar seu próprio cachorro-quente, aterrissando na segurança do colo do amigo na outra extremidade do banco.

O Chico conta que a visão daquela salsicha voadora cortando na horizontal o ar da noite, como um míssil de carne moída, prensada e envolvida em tripa de porco, foi uma das experiências mais terríveis de toda a sua vida. Volta e meia, em momentos de crise, ele ainda sonha com aquela desafiadora, ereta, rija salsicha aérea.

Agora, tem uma coisa de que podemos nos orgulhar, nós, gaúchos: o nosso cheese, o famoso xis. Esse é único. Não existe nada parecido no mundo, nem no P.J. Clarke’s.

Xis-coração.

Tente explicar o que é um xis-coração para um americano e veja-o sair correndo como se você fosse o Bin Laden.

Quando éramos guris, lá no IAPI, íamos até Tramandaí de carona, nos finais de semana de verão. Éramos duros, duríssimos, duranguinhos, só tínhamos verba para os líquidos. Mas havia lá um daqueles trailers de cachorro-quente que fazia um super-hiper-mega-ultra-maxi-xis chamado LP, porque era do tamanho de um Long Play, aquilo que hoje é conhecido como “vinil”. Era bom aquele xis, com destaque para o xis-bacon, uma refeição muito energética.

Eram quatro meninas que atendiam no trailer. Traçamos um plano: quatro de nós iam tentar namorar as meninas para ganhar xis-LP de graça. Com quatro xis-LP, 12 de nós seríamos fartamente alimentados. E lá fomos nós, de posse do nosso charme suburbano. O problema é que só uma era bonitinha, e ela gostou do Plisnou. As outras três... bem, não quero ser preconceituoso, vocês sabem que valorizo a inteligência, a cultura e a sensibilidade das mulheres acima de tudo, mas elas pareciam irmãs da Madame Min...

Então, com ideia fixa no xis-bacon e, ao mesmo tempo, tentando ser galanteador, finquei o cotovelo no balcão do trailer e disse para uma delas, à guisa de elogio:

– Olho para ti e vejo um xis-bacon...

Em um segundo, senti que, com uma única frase, poderia fazer a turma toda ser consumida pela fome cruenta.


Para ver, Potter, como já disse bobagem na vida. E foi assim, em amarga melancolia, que terminaram meus tempos de xis.

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