28
de setembro de 2014 | N° 17936
L.F.VERISSIMO
O mau
sentido
“Liberal”
é uma palavra traiçoeira. É o adjetivo com que os conservadores americanos
xingam a esquerda, ou o que julgam ser a esquerda, no seu país, mas no resto do
mundo é o oposto de conservador. A confusão é antiga. Em inglês “liberal” já
quis dizer licencioso, ou libertino. Shakespeare descreve alguém como sendo um “liberal
villaine”, um vilão liberal, querendo dizer que é um canalha completo. Em todo
o mundo, mesmo onde se fala inglês, “neoliberalismo” significa uma nova versão
do liberalismo econômico do século 19.
Mas
o liberalismo de então se opunha ao mercantilismo e ao poder da elite agrária e
do conservadorismo e tinha um sentido progressista. Na sua versão atual, se
opõe ao dirigismo do Estado e ao controle da empresa livre e, na sua aversão a
qualquer ideia distributivista ou solidarista que atrapalhe os negócios,
recupera o sentido shakespeariano da palavra. Mas, para aumentar ainda mais a
confusão, muitos dos neoconservadores americanos de hoje têm esse nome porque
no passado foram “liberais” progressistas, alguns até trotskistas.
O
único regime econômico viável para um neoliberal seria o liberal no mau
sentido, na opinião de um liberal no outro sentido. Com o suposto ocaso das
ideologias e o fracasso do socialismo real e do capitalismo de Estado, não
haveria mais alternativas para a moral do mercado dominar as nossas vidas.
Democracia
formal não garante democracia econômica, como o Brasil não nos cansa de
ensinar, nem a liberdade de lucrar sem controle ou remorso é a primeira
condição para uma democracia funcionar, como insistem os neoliberais. Fala-se
no fim das utopias, mas sobreviveu o utopismo mais irracional de todos, segundo
o qual pela ganância e o egoísmo exaltados se pode chegar a qualquer ideia de
comunidade e justiça.
O
neoliberalismo só acredita na sua doutrina porque a mantém apesar de todas as
evidências de que também não deu certo, e nos trouxe para esta crise, em que um
sistema financeiro hipertrofiado e desregulado ameaça arrastar todo o mundo
para o precipício.
LEITURAS
Na
Renascença ninguém disse “Oba, estamos na Renascença!”. Vivemos para a frente,
mas entendemos para trás e só sabemos o que nos aconteceu “lendo” o passado. E
às vezes lendo errado. A gente fala nos loucos anos 20 quando várias liberdades
novas começaram a ser experimentadas no rescaldo da I Guerra Mundial e esquece
que foi a era que gerou o fascismo e outras formas liberticidas. O espírito da
Era do Jazz foi um espírito totalitário: prevaleceram não os passos do
Charleston, mas os passos de ganso. Os plácidos e sem graça anos 50 não foram
tão aborrecidos assim. Foram os anos do existencialismo, de revoluções na arte
e na literatura, do nascimento do rockenrol...
Nos
fabulosos anos 60 e 70, enquanto as drogas, o sexo e a comunhão dos jovens pela
paz e contra tudo o que era velho tomavam as ruas, o conservadorismo se entrincheirava
no poder (Nixon nos Estados Unidos, os generais aqui, Margareth Thatcher e
Ronald Reagan já no horizonte) e começava sua própria revolução careta. Quando
fizerem a leitura da época atual, qual será a conclusão errada? Que o mundo se
tornou mesmo uma aldeia global unida pela técnica ou que se dividiu ainda mais
entre ricos e pobres e entre inteligência artificial e fundamentalismos,
misticismo e outras formas de atraso? E no Brasil: o que é mesmo que está nos
acontecendo?
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