28
de setembro de 2014 | N° 17936
ANTONIO
PRATA
O agudo e a
crônica
Quando eu comecei a escrever crônicas, quinze anos
atrás, prometi a mim mesmo que iria revolver somente a terra do meu canteiro,
resistindo à tentação de arrastar o meu modesto arado por latifúndios
pedregosos como a política, a economia, a crise no Oriente Médio. (Como diz o
mestre Humberto Werneck, crônica é conversa sentado no meio-fio, não discurso
sobre um caixotinho). Todo domingo, porém, questiono minha promessa: o mundo é
vil, o país é injusto, há muitas causas importantes sem voz e muitos calhordas
com megafones – devo seguir falando da minha infância, de um amigo que reencontrei,
dos primeiros passos da minha filha?
Às
vezes, em bate-papos com leitores, me perguntam por que eu raramente escrevo
sobre o assunto da semana. Digo que a chance de eu ter alguma coisa relevante a
dizer sobre o assunto da semana é pequena, ainda mais concorrendo com
jornalistas e especialistas que estão debruçados sobre a questão. Serei mais
profundo ou divertido, terei, enfim, mais chance de dizer algo verdadeiro
(mesmo que pequeno, mas verdadeiro, e é isso que importa) se mirar no que eu
conheço: a minha infância, o amigo que reencontrei, os primeiros passos da
minha filha.
Também
costumam perguntar, nesses bate-papos, se por falar sempre de si mesmo o
cronista não seria um autocentrado e, portanto, um alienado. Acho o contrário:
o cronista procura nele mesmo (ou melhor, numa ficção de si mesmo) os assuntos
que possam tocar os outros. Todo mundo teve infância, todo mundo tem amigos que
a vida afastou, mesmo quem não é pai ou mãe sabe o que é uma criança. Se ao
falar do meu umbigo eu não cutucar o seu, a relação umbilical da literatura não
se estabeleceu: pode escrever pro Painel do Leitor.
Esses
questionamentos crônicos me voltam mais agudos nestas eleições. Na quinta
retrasada, dia 18, um PM matou um ambulante com um tiro na cabeça. Nesta segunda,
o PM foi solto. Não houve manifestações nem indignação por parte da população e
Geraldo “quem não reagiu tá vivo” Alckmin, o chefe da PM, deve ser reeleito no
primeiro turno. (Sobre o silêncio de São Paulo diante do assassinato, ler
Flávio Moura em: http://migre.me/lRQpJ). Naquela mesma quinta, 18, no presídio
de Pedrinhas, Maranhão, foi assassinado o décimo sétimo preso, só este ano. Ano
passado, foram 60; alguns deles, decapitados diante das câmeras de celulares.
Os
senhores feudais que dominam o Maranhão e gerenciam Pedrinhas são da base de
apoio da Dilma, que acusa Marina de ser uma proposta insensata por não contar
com o apoio de senhores feudais como os que dominam o Maranhão e gerenciam
Pedrinhas. Marina, contudo, não é nada insensata: a paladina da nova política
apoia quem, em SP? Alckmin.
Devo
seguir falando da minha infância, de um amigo que reencontrei, dos primeiros
passos da minha filha? Às vezes, acredito que sim: que a crônica existe para
iluminar uns rincõezinhos assombreados do cotidiano, pra abrir nossos olhos
para a graça que passa despercebida, pelas esquinas – e que isso também é um
ato político. Outras vezes, porém, me vejo como um nobre gordo, na França, em
1788, comendo codornas enquanto o povo morre de fome, de bala ou é decapitado
do lado de fora e nos calabouços do castelo.
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