23 de setembro de 2014 |
N° 17931
MOISÉS MENDES
As negas
O ator Miguel Falabella está cada
vez mais parecido com o malandro que passa o dia no boteco da esquina. Senta-se
numa mesa de canto e ali fica tomando café preto em copo de martelinho de
cachaça.
Falabella é assumidamente
suburbano. Sustenta sua arte nos tipos e costumes da periferia e agora está
envolvido numa controvérsia como autor do seriado Sexo e as Negas, que estreou
na Globo na semana passada. Militantes negras não gostaram.
A série conta histórias de quatro
amigas negras do Cordovil, zona norte do Rio. É uma imitação do famoso seriado
americano Sex and the City. No original, quatro amigas brancas, de Nova York,
tentam dar conta do prazer, do amor, da batalha para segurar um homem (ou
mandá-lo embora) e, se sobrar tempo, cuidar do trabalho e de suas miudezas
cotidianas.
As quatro brancas americanas são
advogada, colunista de jornal, vendedora de obras de arte e relações públicas.
As negras do seriado brasileiro são camareira, cozinheira, operária e
costureira.
Aí começa a polêmica: por que as
quatro negras suburbanas são dedicadas ao trabalho braçal? A série não poderia
ter negras da periferia advogada, psicóloga, arquiteta ou empresária?
A crítica mais contundente é a de
que Falabella só explora estereótipos. As negras que caberiam na sua arte são
gostosas, operárias, fúteis e sempre com pouco dinheiro para o táxi. Não
haveria chance para a ascensão social entre as negas falabellianas.
Não é coisa pouca para que alguém
se faça de surdo e diga que a arte não aceita censura. Os criadores de um
produto com forte apelo popular, calcado no que seria o mundo suburbano,
deveriam prestar atenção no que andam dizendo a respeito do que fazem.
Vale para seriados da TV e para
xampus. Há alguns anos, o xampu Seda teve a liderança de mercado ameaçada
porque as mulheres da nova classe média queriam algo mais sofisticado. O Seda
havia ficado no passado como xampu de pobre.
Falabella enfrentaria o mesmo
fenômeno. Não dá pra continuar na periferia que não tinha o direito de escolher
xampu e insistir nas negras coxudas e luxuriantes. Cobram dele uma atualização
que acompanhe a evolução da própria TV na desconstrução de preconceitos.
Aline Djokic, professora de
Literatura, militante negra, condena "a branquitude que usufrui da herança
racista e escravagista, para permanecer na casa grande e só adentrar a senzala
toda vez em que o desejo de fetichização do corpo negro tornar-se
latente".
No imaginário de certos brancos,
as negras continuam tendo valor se erotizadas. Dizer que a reação seria mais
uma ladainha do politicamente correto é subestimar o que as negras andam
dizendo sobre a imagem que os brancos ainda têm delas.
Falabella estaria se repetindo
com uma piada velha, dos subúrbios do início do século 20, do tempo de Noel
Rosa e Madame Satã.
Nas entrelinhas, esse debate
acaba por questionar a qualidade de um humor antigo e descolado (e
aparentemente inocente), que faz o escracho de negros, pobres, analfabetos e
desdentados. Enfim, o que sabemos é que o xampu citado mudou fórmulas e
embalagens e se atualizou.
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