WALCYR
CARRASCO
02/05/2014
22h22
Mães e filhos
Adolescente,
brigava muito com minha mãe. Mas pude dizer quanto a amava antes de perdê-la
O
Dia das Mães se aproxima, e novamente sou inundado por anúncios e ofertas
promocionais. Já perdi minha mãe faz tempo. Essa data sempre me faz reviver a
falta, a dor e a complexidade dessa relação, tão importante para qualquer um.
Assumo: me torno francamente piegas. Penso que, entre os inúmeros
liquidificadores, jogos de xícaras e pratos que dei a minha mãe, talvez não
tenha sabido expressar meu amor o suficiente.
Ou
soube? É uma pergunta sem resposta, a não ser que, entre os mistérios do mundo,
existam realmente os encontros em outra vida. Francamente, filhos fazem das
mães gato e sapato. Uma secretária do lar minha no Rio de Janeiro – é assim que
se diz empregada em termos politicamente corretos, não é? – teve uma única
filha, sem casamento. Morava na época numa comunidade, precisava trabalhar, mas
lutou para fazer o melhor pela menina. E se superou.
Conseguiu
vaga numa escola pública de qualidade. Botou a menina na natação de um clube
famoso, gratuitamente, para impedir que ficasse solta. O tempo passou. Num
projeto social do governo para retirar famílias de área de risco, a mãe
conseguiu uma casinha. A filha encheu as paredes de medalhas, ganhas
sucessivamente na piscina. Seu futuro parecia traçado: faria educação física,
seria personal trainer, professora. Quem sabe, campeã internacional.
Claro,
brigavam. A mãe montava guarda feroz. Quando a garota começou a namorar,
insistia em ir ela, o namorado e a filha à pizzaria, se saíam à noite. Um
horror para uma jovenzinha de 16 anos. Esperava na saída dos treinos.
Vigilância absoluta. Também exagerava nos mimos. O excesso criava sonhos. A
menina queria morar na Zona Sul, exigiu um curso de informática, que a mãe
pagou, e não foi a nenhuma aula. De frustração em frustração, a relação entre
ambas estremeceu.
Sem
nenhum sinal prévio, um dia a filha fez a mochila e fugiu de casa. Deixou uma
carta, acusando a mãe de maus-tratos, até ameaçando com denúncia se a
procurasse. Eu sabia bem que brutalidade não havia nenhuma. Ela tinha 17 anos.
A mãe procurou a polícia. Ouviu que não adiantava: se achassem a fugitiva, com
17 anos, ela sumiria de novo, e de novo. Eu estava fora do país e só soube
disso tudo depois. Caso contrário, teria exigido alguma ação. A mãe chamava no
celular. A filha trocou e não deu o número novo. Às vezes, ligava. Ou
telefonava para algum parente dizendo que estava bem. Negava sempre o endereço.
Largou
escola. Mudou de clube para praticar natação, mas avisou: se a mãe aparecesse,
nunca mais falaria com ela. No aniversário, minha funcionária esperou um
telefonema que não veio. Nem no Dia das Mães. No aniversário da filha, comprou
uma corrente de ouro a prestação, na esperança de vê-la. Que nada!
– Só
sei que está viva – disse.
Minhas
piores expectativas se confirmaram quando um funcionário meu, de São Paulo,
contou que, numa viagem ao Rio, a garota mostrara sua página no Orkut.
Apresentava-se com o nome seguido do adjetivo “safadinha”.
Um
ano depois, sem explicação alguma, a filha reapareceu. Procurou a mãe, e
tiveram uma longa conversa. Na semana seguinte, voltou para casa. Nunca disse
onde morou, o que fez nesse intervalo.
– Um
dia eu conto.
Arrumou
namorado e hoje mora com ele. Tenta voltar a estudar e foi trabalhar em
telemarketing. O esporte saiu do horizonte. Assim como os sonhos da mãe, que
sempre dizia:
– Eu
queria que minha filha tivesse o que não tive.
Pois
é. Ao que tudo indica, não terá.
É
uma história tremenda, que presenciei. Na minha imaginação, essa garota fez mil
coisas. No mínimo, estava com alguém que não queria assumir o relacionamento,
talvez por ser casado. Pensando na página do Orkut, sei não...
Disse
que hoje me sinto piegas. A ingratidão dos filhos é palpável, acontece sempre
em algum momento. Em certos aspectos, até me identifico com essa garota. Adolescente,
também brigava com minha mãe pelas coisas que ela não podia me dar. Quando ela
ficou gravemente doente, recebi o conselho de uma amiga:
– Se
tiver alguma coisa para dizer a sua mãe, é agora. Depois, ela não estará lá
para ouvir.
Até
hoje agradeço esse aviso. Tive a oportunidade de dizer quanto amava minha mãe e
quanto era feliz por ser seu filho. Valeu.
Vejo
muitos livros ensinando mulheres a ser mãe, desde que a gente nasce até em
outras fases da vida. Mas também é preciso aprender a ser filho.
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