24
de maio de 2014 | N° 17806
O
PRAZER DAS PALAVRAS | Cláudio Moreno
A quadratura do
círculo
UMA
LEGIÃO DE cientistas e de amadores já enfrentou o desafio
Às voltas com seu trabalho de conclusão de curso (o
temido TCC, no jargão acadêmico), uma aluna de Santa Maria pede ajuda para
entender uma frase em que Roland Barthes afirma que a obra de Gilberto Freyre
“importa na quase realização da quadratura do círculo dos historiadores”. A
leitora quer saber, afinal, se isso é crítica ou elogio. Diz ela: “Professor, o
contexto em que Barthes faz essa afirmação parece bem elogioso, mas sempre
entendi que procurar a quadratura do círculo era perda de tempo, coisa de
cientista biruta. Estive enganada todo esse tempo?”.
Olha,
leitora, eu também pensava assim; até ler a tua mensagem, eu também era capaz
de jurar que esta expressão servia para designar uma tarefa impossível de
realizar, um absurdo em si mesmo, pois, se era círculo, não podia ser
quadrado... Ah, a felicidade dos que não sabem! Meu advogado de defesa alegará
que tenho atenuantes, pois sou do tempo em que a escola se dividia entre
Clássico e Científico, e eu, tendo cursado o primeiro, encerrei muito cedo meus
estudos de Matemática, não indo além das equações de 2º Grau.
No
que se refere à quadratura, contentava-me com a frase de Flaubert, no seu
implacável Dicionário das Ideias Feitas: “Não se sabe o que seja, mas deve-se
dar de ombros sempre que falarem nisso”. Tua pergunta, porém, acendeu uma luz
vermelha: como Roland Barthes sempre foi um admirador da obra do genial Gilberto
Freyre, quem ficou em dúvida fui eu, e resolvi aprender.
Não
precisei ir muito longe para descobrir que já na Antiguidade esta era uma
celebérrima questão de Geometria, tendo ocupado gênios como Hipócrates,
Euclides e Arquimedes. Ela consiste em construir um quadrado que tenha a mesma
área de um dado círculo, usando apenas um compasso e uma régua sem graduação.
Embora já se tenha demonstrado que é tecnicamente impossível resolver o
problema usando apenas esses recursos, por mais de dois mil anos uma legião de
cientistas e de amadores enfrentou o desafio. A expressão de Barthes, portanto,
é um elogio à obra de Freyre, que, segundo ele, quase chega a resolver um
problema até agora considerado insolúvel para os historiadores (que problema é
este, eu não sei; como não recebi o texto todo, me sinto abandonado no meio do
baile...).
Se
fosse para expressar uma dessas inutilidades que abundam no mundo acadêmico, a
palavra mais adequada, fresquíssima, estalando de nova, recentemente saída do
forno do Umberto Eco (pois foi ele que a confeccionou), é a portentosa
tetrapilectomia, uma elaborada construção em que se reúnem três elementos
heterogêneos: tetra (no Grego, “quatro”); pilus (no Latim, “pelo, cabelo”) e
tomia (no Grego, “corte”). Essa palavrona (pois palavrão ela não é) designa a
inútil arte de dividir, em quatro partes, um fio de cabelo ao comprido. Exemplo
de uso? Aqui vai um: “Aquele lá é o rei da tetrapilectomia. Ele não consegue
dizer uma frase sem despejar em cima da gente uma avalanche de detalhes inúteis”.
Conheço uma meia dúzia desses.
Cláudio
Moreno é professor de português e escreve quinzenalmente aos sábados.
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