22 de maio de 2014 | N°
17804
L.F. VERISSIMO
Contos de fada
Na introdução ao seu livro O
Capital no Século 21, que está dando tanto o que falar, o francês Thomas
Piketty faz uma espécie de retrospectiva do pensamento econômico até hoje.
A uma comparação entre Simon
Kuznets (o russo naturalizado americano que ganhou o Nobel de Economia em 1971
pelo seu trabalho sobre distribuição de renda em sociedades industriais) e Karl
Marx, Piketty deu o título de “Do apocalipse ao conto de fada”.
Apocalipse era o que Marx
prometia, com sua previsão de que a burguesia produziria seus próprios coveiros
e só o proletariado sublevado derrotaria o capital espoliador.
Conto de fada era a chamada
“curva de Kuznets”, segundo a qual o capital cumulativo e monopolista
eventualmente se autocorrigiria e, para citar uma imagem fluvial ainda em uso
hoje, quando as águas subissem ergueriam todos os barcos ao mesmo tempo.
Entre parênteses: o economista
brasileiro Paulo Gurgel Valente, num texto que circula na internet, fez um
ótimo resumo, claro e didático, do trabalho de Kuznets e da crítica de Piketty.
Piketty reconhece a importância
de Kuznets, um dos primeiros economistas a recorrer a estatísticas científicas
com as quais Marx (e Malthus e Ricardo e outros catastrofistas dos séculos 18 e
19) nem sonhava. Mas as conclusões de Kuznets podem ser chamadas de canções de
ninar para capitalista selvagem dormir sem remorso.
Piketty perdoa o otimismo de
Kuznets porque ele é um reflexo direto do otimismo da época, o período entre o
fim da II Guerra Mundial, 1945 e 1975, 30 anos que na França são chamados de
“les trente glorieuses”, durante os quais todos os barcos subiram juntos e
subiram muito.
Desde então, de acordo com o
estudo das estatísticas a seu dispor (e ao dispor de todo o mundo) e as
previsões de Piketty, os mitos do mercado autorregulado, da mãozinha invisível
de Adam Smith e da eventual superação da desigualdade e da injustiça que virá
um dia, é só ter paciência, sobrevivem nos contos de fada com final feliz que o
neoliberalismo insiste em nos contar, e defende contra todas as evidências.
Um contrapeso teórico à sua tese,
do qual Piketty não foge, é que o sonho – ou o pesadelo, dependendo de que lado
você estaria quando viesse o cataclismo – previsto por Marx também não
aconteceu. O apocalipse marxista também virou conto de fada, pelo menos na sua
pretensão escatológica à redenção da humanidade no fim do capitalismo, do
Estado e da História.
Piketty propõe medidas contra a
desigualdade difíceis de imaginar na prática, como a taxação universal de
grandes fortunas herdadas e lucro desmedido. Mas seu livro está sendo
considerado tão importante, sobre distribuição de renda no século 21, quanto as
teses equivocadas de Kuznets que justificavam a ganância no século 20. Resta
saber se terá a mesma influência.
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