CONTARDO
CALLIGARIS
Amor à venda
Por que recusamos a ideia de que
existem fantasias sexuais que envolvem a troca de dinheiro?
"Amante a Domicílio",
de John Turturro, é um filme, como se diz, "delicioso". Nos Estados
Unidos, uma série de artigos celebraram a "descoberta" de que
existiria um "lado bom" da prostituição.
Em várias entrevistas, Turturro
(que escreve, dirige e atua junto com Woody Allen, Sharon Stone, Vanessa
Paradis e Sofia Vergara, todos notáveis) levou a conversa por esse lado:
"Há coisas positivas no que fazem os trabalhadores do sexo". Por
exemplo, Avigal, oprimida e entristecida pela viuvez e por sua própria tradição
religiosa, redescobre a "magia" do amor graças a Fioravante, o
gigolô. E é transando com ele que a dra. Parker se permite enfim mandar o retrato
do marido à merda.
A consagração dessa visão do
filme veio com um artigo de Karley Sciortino no "Guardian". Karley
Sciortino escreve sobre sexo para "Vice" e para "Vogue",
além de manter um (ótimo) blog, "Slutever" (sempreputa). Sciortino
recorreu a Camille Paglia para lembrar que "moralismo e ignorância"
são responsáveis por nossos estereótipos sinistros da prostituição e confirmar
que Turturro nos mostrou o que há de positivo nela.
No Brasil, estranha-se menos que
a prostituição possa ter algum lado "bom", mesmo que seja pela ideia
machista e idiota de que ela serviria para a iniciação dos garotos (que, aliás,
não precisam mais disso há tempos).
Mas, nos EUA, a coisa é
diferente: com a exceção de Nevada, prostituir-se e contratar os serviços de
uma ou de um prostituto são condutas punidas por prisão e multa. Isso, sem
falar no que acontece com quem "promove a prostituição" (o que vai
desde ser cafetão até alugar um apê a quem exerça a profissão). Enfim, em 2007,
Eliot Spitzer se tornou governador do Estado de Nova York por ter sido um
promotor severo contra as prostitutas e, em 2008, ele perdeu o governo por ter
se relacionado, justamente, com prostitutas.
De fato, imaginar que a
prostituição seja proibida em Nova York é uma piada. Mas a legislação reflete
pensamentos comuns. Numa pesquisa-brincadeira de 2008, em Chicago, 200 clientes
aceitaram falar de por que frequentavam prostitutas: 83% declararam que eles
eram viciados e 40% afirmaram que só procuravam prostitutas quando estavam
bêbados. A maioria acreditava que as prostitutas exercem sua profissão porque
foram abusadas na infância. Em suma, clientes e prostitutas (ou prostitutos),
todos doentes!
Não vale acusar o proverbial
puritanismo dos EUA. Na própria França, ainda este ano, tem chances de ser
aprovada uma lei que ("para acabar com a prostituição" --hello?) vai
criminalizar o cliente.
Enfim, constata-se que existe um
tabu sobre o sexo pago.
Uma hipótese, para explicá-lo, é
o seguinte círculo vicioso: 1) recusamos a ideia de que exista uma fantasia
sexual que envolve a troca de dinheiro, 2) concluímos que, portanto, a
prostituição só acontece por necessidade absoluta de quem se prostitui, 3)
queremos abolir a prostituição (de fato ou mentalmente) porque não queremos que
existam diferenças econômicas que possam induzir alguém a vender sua
intimidade.
O problema é o pressuposto: por
que recusaríamos a ideia de que existam fantasias sexuais que envolvem a troca
de dinheiro? Talvez por elas serem quase sempre fantasias de dominação, e
muitos que gozam sonhando com a distribuição do poder preferem não saber
exatamente do que eles estão gozando.
Em outras palavras, o dinheiro
organiza fantasias eróticas, mas ele é presente demais na nossa vida social
(inclusive nas relações de casal, entre parentes, amigos etc.) para que a gente
se permita reconhecer esse efeito de sua circulação.
Nota: não é necessariamente quem
paga que gosta de dominar. Certo, há os que curtem comprar amantes ou mulheres
ou maridos. Mas também há os que pedem para ser explorados e, nas salas de
bate-papo, se apresentam assim: acabe com a minha vida!, quero ser chantageado!
Achamos "Amante a
Domicílio" "delicioso" porque ele confirma nossa crença
(esperança?) de que a troca de dinheiro nas relações seja indiferente (no
filme, apaixonamentos, renúncias, generosidades e pequenezas, tudo acontece
como se ninguém estivesse pagando ninguém).
Será, então, que Turturro nos
propõe uma ilusão? Talvez. Mas é a mesma ilusão na qual vivemos: nas nossas
relações de cada dia, sempre tentamos esquecer o "erotismo"
silencioso das trocas financeiras.
ccalligari@uol.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário