sábado, 24 de maio de 2014


25 de maio de 2014 | N° 17807
ANTONIO PRATA*

Um escritor! Um escritor!

*ANTONIO PRATA É ESCRITOR, AUTOR DE MEIO INTELECTUAL, MEIO DE ESQUERDA (2010) E NU, DE BOTAS (2013). ESCREVE SEMANALMENTE NESTE CADERNO

Com o jornal numa mão e um guaraná diet na outra eu caminhava pelas ruas de Kiev, desviando de barricadas e coquetéis Molotov, quando a voz no sistema de som me trouxe de volta à poltrona 11C do Boeing 737: “Atenção, senhores passageiros, caso haja um médico a bordo, favor se apresentar a um de nossos comissários”.

Foi aquele discreto alvoroço: todos cochichando, olhando em volta, procurando o doente e torcendo por um doutor, até que, do fundo da aeronave, despontou o nosso herói. Vinha com passos firmes – grisalho, como convém –, a vaidade disfarçada num leve enfado, como um Clark Kent que, naquele momento, estivesse menos interessado em demonstrar os superpoderes do que em comer seus amendoins.

Um comissário o encontrou no meio do corredor e o levou, apressado, até uma senhora gorducha, que segurava a cabeça e hiperventilava, na primeira fileira do avião. O médico se agachou, tomou o pulso, auscultou peito e costas, conversou baixinho com ela, depois falou com a aeromoça. Trouxeram uma caixa de metal, ele deu um comprimido à mulher e, nem dez minutos mais tarde, voltou pros seus amendoins, sob os olhares admirados de todos.

Ou de quase todos, pois a minha admiração, devo admitir, foi rapidamente fagocitada pela inveja. Ora, quando a medicina nasceu, com Hipócrates, a história de Gilgamesh já circulava pelo mundo havia mais de dois milênios: desde tempos imemoriais, enquanto o corpo seguia ao Deus dará, a alma era tratada por mitos, versos, fábulas – e, no entanto... No entanto, caros leitores, quem aí já ouviu uma aeromoça pedir, ansiosa: “Atenção, senhores passageiros, caso haja um escritor a bordo, favor se apresentar a um de nossos comissários”?

Eu não me abalaria. Fecharia o jornal, sem afobação, poria uma Bic e um guardanapo no bolso, iria até a senhora gorducha e me agacharia ao seu lado. Conversaríamos baixinho. Ela me confessaria, quem sabe, estar prestes a reencontrar o filho, depois de dez anos brigados: queria falar alguma coisa bonita pra ele, mas não era boa com as palavras. Eu faria uma rápida anamnese: perguntaria os motivos da briga, se o filho estava mais pra Proust ou pra UFC, levantaria recordações prazerosas da relação e, antes de tocarmos o solo, entregaria à mulher três parágrafos capazes de verter lágrimas até da estátua do Borba Gato.

De volta ao meu lugar, passageiros me cumprimentariam e compartilhariam histórias semelhantes. Uma jovem mãe me contaria do primo poeta que, num restaurante, ao ouvir os apelos do garçom – “um escritor, pelo amor de Deus, um escritor!” –, tinha sido levado até um rapaz apaixonado e conseguido escrever seu pedido de casamento no cartão de um buquê antes que a futura noiva voltasse do banheiro. Um senhor comentaria o caso muito conhecido do romancista que, após as súplicas de mil turistas, fora capaz de convencer 200 tripulantes de um cruzeiro a abandonar o gerúndio.


Eu sorriria, de leve. Diria, “Pois é, se você escolheu essa profissão, tem que estar preparado pras emergências”, então recusaria, educadamente, o segundo saquinho de amendoins que a aeromoça me ofereceria e voltaria, como se nada tivesse acontecido, para as bombas da Crimeia, com meu copo de guaraná.

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