23
de maio de 2014 | N° 17805
MOISÉS
MENDES
Exu e São Jorge
Há
uns sete anos, eu e meu amigo Kadão Chaves, editor do Almanaque Gaúcho,
passamos algumas horas num ambiente assustador. Kadão era editor de fotografia
de ZH na época. Eu tinha a missão de escrever sobre o cenário de uma chacina
que ele iria retratar.
Uma
mãe e dois filhos de 20 e poucos anos haviam sido mortos a tiros na madrugada
num casebre de Canoas. Chegamos à tarde, estava nublado. Um valão imundo ao
lado da casa parecia querer engolir o que existia à volta. Caminhávamos no que
já era, antes do massacre, um cenário apavorante.
Um
irmão dos mortos nos guiou pela casa. Narrava o acontecido com a ansiedade de
único sobrevivente. Éramos os ouvintes que o moço queria para poder dizer que
escapara do inferno. Ele não estava em casa na hora do ataque. Falar é a
salvação de quem sobrevive, e ele falava.
Sentamos
diante da casa. Faltava ar naquele ambiente sombrio. E eu me interrogava sobre
uma casinha de madeira, vermelha, parecida com as casas de pátio de crianças,
ao lado de uma árvore. O rapaz falava da mãe, dos irmãos, das suspeitas, e eu
vi que o Kadão também olhava a casinha.
Até
que um amigo do moço fez o pedido: vocês já ouviram tudo, deixem o cara em paz,
vão embora. É quando você não sabe direito se deveria estar mesmo ali. Na
saída, perguntei ao rapaz o que era aquela casinha, e ele me disse: é a casa do
Exu Caveira, o protetor da minha mãe.
Retornei
a Porto Alegre com o Kadão, pensando no morador da casa vermelha e no sentido
daquilo tudo. Três pessoas assassinadas ao lado de quem deveria protegê-las. Só
no retorno ao jornal fiquei sabendo que Exu é o que, apesar das controvérsias,
a maioria dos cultos afros define como entidade de luz, sem relação com trevas
e morte.
Lembro
agora do Exu Caveira porque um juiz federal escreveu num despacho esses dias
que umbanda e candomblé não são religiões. O juiz entende que uma religião deve
ter um livro, uma hierarquia e um Deus. Deve ser estranho para o juiz, tanto
quanto foi para mim, que alguém mantenha um orixá dentro de uma casinha. Mas
talvez ele não veja nada de anormal no fato de que santos católicos têm
moradias semelhantes.
O
juiz também poderia achar estranho que o Exu não tenha cumprido a missão de
sentinela da casa invadida. Mas talvez não tenha visto incoerência entre
religião e tragédia quando um terremoto fez desabar uma igreja sobre a missionária
brasileira Zilda Arns, como aconteceu há quatro anos no Haiti.
Religiões
se diferenciam por textos, oralidade, liturgias, fragilidades e mistérios de um
ou mais deuses, santos, entidades ou pela negação de todos os santos. Mas, para
muita gente, a diferença entre Exu e São Jorge pode estar no detalhe de que um
anda a pé e o outro anda a cavalo. Ou qual é o melhor?
O
resto é preconceito cultural de quem se acha representante de pretensas
superioridades religiosas e assim impõe seu poder.
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