25
de maio de 2014 | N° 17807
LUÍS
AUGUSTO FISCHER
Aprender a prosa deste mundo
Aí está
um livro: O Espírito da Prosa – Uma Autobiografia Literária, de Cristóvão Tezza
(Record, 2012). Li-o inteiro só agora, quase ao mesmo tempo que a outro, seu
parente, Meus desacontecimentos – A História da Minha Vida com as Palavras, de
Eliane Brum (Leya, 2014).
São
dois escritores pensando, por escrito, em relatos de memórias, sobre seu
aprendizado da escrita – desculpada a repetição. São de duas gerações
diferentes: Tezza, curitibano nascido em Lages, SC, é de 1952, e Eliane Brum
nasceu em Ijuí, em 1966, vivendo há tempos em São Paulo.
Cristóvão
Tezza é romancista, com carreira acadêmica em alto estilo, com doutorado sobre
Mikhail Bakhtin, o que não é pouco.
Eliane
Brum é jornalista de ofício e documentarista, tendo tido uma trajetória
especial como repórter, aqui na Zero Hora, depois na revista Época e agora no
portal do El País, mas recentemente apresentou ao mundo um romance, Uma Duas.
Em
geral tenho muito gosto por narrativas de memória, o que neste caso se
acrescentou do interesse pelos bastidores da criação literária, ainda mais que
se trata de dois escritores que aprecio muito. Tezza leio e acompanho de perto,
como um dos mais significativos autores de sua geração.
Recentemente,
li seu novo romance O Professor, e mais uma vez me encantei com seu domínio
exemplar da narração, sempre a serviço de histórias que me, nos dizem respeito,
ao menos a nós sulinos, gente urbana, gente fechada, que tem no trabalho e na
família horizontes obrigatórios de atenção, bastante diferentes do brasileiro
solar carioca, ou do brasileiro do sertão profundo ou da selva.
De Eliane Brum acompanho as reportagens, desde
sempre, nos periódicos, em histórias que já renderam livros excelentes, como A
Vida que Ninguém Vê e A Menina Quebrada, da Arquipélago.
Tezza
conduz sua memória de modo analítico, e só aqui e ali deixa correr os fatos. Quem
comanda o espetáculo é uma questão forte, um problema de alta relevância. Conhecedor
de Bakhtin como poucos brasileiros, Tezza remonta sua experiência desde a família
convencional de classe média até seu começo tardio de vida acadêmica, passando
por um período decisivo de vivência numa comunidade meio hippie, dedicada ao
teatro. O foco é sempre o mesmo: ele quer saber como aprendeu a escrever os
romances que veio a escrever. Quer entender.
E
ilumina muito a cena, porque lida com o conceito que está no título, o “espírito
da prosa”, um certo jeito de ser do mundo e de estar no mundo que necessita do
diálogo, da possibilidade de enunciação de várias vozes, para se fazer. Romance,
ou prosa no sentido bakhtiniano, precisa da diferença, aliás só existe na
diferença – e a vida de Tezza, como ele reflete, foi por muito tempo
atravessada por outro espírito, o da poesia, no sentido do mesmo pensador
russo, isto é, um espírito que quer dizer coisas sobre o mundo, que tem juízos
sobre o mundo, que está mais interessado nisso do que em entender e dar forma à
infinita conversa de que a prosa se faz.
Já o
livro de Elaine Brum se entrega mais ao fascínio das histórias que vai
contando, em episódios sofridos e quase sempre transcendentais. Também há falta
de “espírito de prosa” em sua história pessoal, marcada pela vida acanhada em
cidade pequena, sob o jugo ditatorial, e protagonizada por uma mulher que teve
filha ainda na adolescência. Mas aquela menina vai aprendendo a força que há na
palavra, tanto a que vai ser escrita quanto, antes ainda, naquela que a futura
repórter e escritora vai ouvir, quer ouvir, precisa conhecer para melhor dar a
conhecer.
Duas
excelentes leituras, de temperamento diverso, mas convergentes no ensinamento sábio
(aquele que mais quer aprender do que doutrinar) da lida com as palavras.
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