01 de junho de 2014 | N°
17815
ANTONIO PRATA
Fio dental
Fiquei na dúvida se começava esta
crônica com “O ser humano não aprende com os próprios erros” ou “Os pequenos
incômodos, não as grandes tragédias, é que fazem da vida um inferno”. São dois
começos tonitruantes, como convém a um tema tão profundo quanto o anunciado no
título.
A primeira afirmação tem a
vantagem de exprimir uma verdade, mas é esse também o seu defeito: de tão verdadeira
soa como uma dessas platitudes escritas em para-choque de caminhão. Já a
segunda frase é duvidosa, mas traz ao menos a graça e o suspense da provocação
irresponsável: será um calo pior do que um terremoto? Não creio. Um cronista,
porém, precisa fazer suas escolhas: entre a fria verdade e uma mentira bem
refogadinha, jamais deve titubear, de modo que...
Os pequenos incômodos, não as
grandes tragédias, é que fazem da vida um inferno. Veja o caso do fio dental
que arrebenta. Tenho 30 dentes na boca, o que resulta em 28 vãos, dos quais 27
não me causam problema algum: o fio entra tranquilamente, desliza de cá pra lá,
de lá pra cá e leva embora os tributos indevidos que me recuso a pagar às
cáries, ao tártaro e à placa bacteriana. Há um vãozinho, contudo, embaixo e à
esquerda, em que os dentes estão próximos demais.
Em meus 37 anos sobre a Terra,
encontrei uma única marca de fio dental capaz de penetrar essas encostas
mortais e sair incólume. Todas as outras, das diáfanas fitas mentoladas aos
robustos cabos oferecidos em banheiros de churrascaria, arrebentam no meio do
caminho. Se eles só arrebentassem, tudo bem: a encrenca é que abandonam ali, na
zona do agrião (literalmente, dependendo do cardápio) parte de sua matéria,
piorando a situação.
Pois bem: eu sei que só uma marca
dá conta do recado, que todas as outras se rompem, mas às vezes meu fio dental
acaba, ou vou viajar e esqueço de botá-lo na mala – e é aí que chegamos ao
para-choque de caminhão. O ser humano, não aprendendo com os próprios erros,
tenta se enganar, pega o fio dental da mulher e pensa assim: “É só ir com
jeitinho, só ir no ângulo certo que vai rolar”. Pronto: o fio entra, rasga e
parece que tem um caroço de goiaba empurrando um dente pra cada lado.
O ser humano não só não aprende com
o próprio erro, como insiste. Ele inventou a clava e depois a flecha e depois a
espingarda e depois a bomba atômica e depois de arrebentar o fio pela primeira
vez, o que ele faz? Tenta de novo. E arrebenta de novo. Ele desiste? Sai pra
comprar o fio certo? Não: ele resolve enrolar o fio dental, fazer uma espécie
de trancinha que, com sua dupla resistência e a fé em Deus, retirará os
resíduos alimentares e os fiapos dos companheiros tombados em combate.
A trancinha rasga, claro. Os
dentes pulsam, como se houvesse um caroço de azeitona entre eles. É agora que o
ser humano desiste? Não. O ser humano vai seguir tentando, com fios triplos,
quádruplos, com linhas de costura, de pesca, cabos de aço, de alta tensão, com
o Trópico de Capricórnio e a Via Láctea, até que o cansaço ou a humilhação o
atirem na cama.
Pensando bem, acho que me enganei
ao duvidar que os pequenos incômodos, não as grandes tragédias, é que tornam a
vida um inferno – o que me força a admitir que o ser humano, às vezes, aprende
com os próprios erros. (Devia ter começado com “Veja o caso do fio dental que
arrebenta.”).
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