28
de maio de 2014 | N° 17810
PEDRO
GONZAGA
O HOMEM DO MOCOTÓ
Acabo
de me lembrar (agora é tarde) de um famoso manual de redação que recomendava
nunca começar um texto por referências climáticas. Até porque já começo: Na
fria manhã de maio, o prato surge luminoso e tóxico, para júbilo de meu pai,
que pergunta por meu vaticínio, reerguendo em minha mente a triste história de
um cronista que, para seu infortúnio, piedosos leitores, entrou na mais
virulenta polêmica de sua carreira no dia em que declarou que o último mocotó seria
servido em 2047.
Eu
recém começara a fazer crônicas, a convite da Katia Suman, primeiro no rádio,
depois na televisão. Animava-me ainda o vaidoso desejo de polêmica. Desfilava
ideias que a mim pareciam originais e provocantes, moventes em seu brilho. Nenhuma
reação dos espectadores. Desiludido, conformei-me em entreter. Um dia,
insciente, mencionei uma singela pesquisa que havia feito no cursinho. Líamos
um conto e de súbito aparecia um prato de mocotó na história.
Descobri,
satisfeito, muitos esgares entre os alunos. Levado por um interesse científico –
juro que não pesava o dito de meu pai, a linha divisória entre o moleque e o
homem é o mocotó –, fiz uma enquete na Sala 8 do Unificado. Dos 300 presentes,
apenas 12 réus confessos. Depois bastou projetar essa minoria no tempo, à idade
em que começariam as restrições alimentares.
2047:
o ano da graça do último prato de mocotó.
Disse
isso no ar, entre risadas da equipe da tevê. Mas, ao abrir o computador em
casa, desceu uma chuva de e-mails: cegueira, desrespeito às tradições e ao
quitute que nos lares gaúchos jamais faltaria.
Tentei
em vão me defender. Mesmo o programa recebera protestos e ameaças. Passei a
olhar para os lados na rua. Sou gordo, sempre um alvo fácil.
No
domingo seguinte, almoçava com meu pai numa churrascaria quando um dos donos (que
vira o programa) se aproximou com um balde branco. O nosso mocotó, ele disse. Procurei
pelo adesivo de ameaça biológica. Nada. Na saída, meu pai me encarregou de
levar o presente. Mancomunado com a Katia, os dois haviam escondido um fotógrafo
para o flagra. A imagem acabou indo ao ar. E os que antes estavam do meu lado,
agora me acusavam de jabá.
Por
fim, a polêmica arrefeceu, como sói ocorrer. Até que um dia senhora patusca,
compactada em descomunal vestido, gargalha no meio da rua, aponta para mim e
grita: o homem do mocotó!
Triste
fim do Policarpo Quaresma do Bom Fim.
Ao
menos até 2047 chegar.
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