19
de maio de 2014 | N° 17801
L.F VERISSIMO
Othelo
Para
quem gosta de cinema, Paris é um banquete. Duvido que outro lugar do mundo
tenha tantas salas de exibição, entre cinemões e cineminhas. Além dos últimos
lançamentos, estão sempre em cartaz reprises de filmes clássicos e festivais de
diretores cultuados.
Um
favorito reincidente nesses festivais é Ernst Lubitsch, o judeu alemão que
representou como ninguém a efervescência cultural de Berlim entre as duas
guerras e depois levou para Hollywood seu humor sofisticado.
Gostos
rarefeitos como o por comédias americanas dos anos 30 e 40 com o chamado “toque
de Lubitsch” são servidos permanentemente em Paris, em pequenas salas onde as
instalações precárias não prejudicam nem o conforto dos fanáticos nem a
qualidade da projeção.
Foi
numa dessas cinebutiques que vimos recentemente a colaboração de Shakespeare e
Orson Welles em Othelo, numa versão restaurada. Eu me lembrava de ter visto o
filme no seu lançamento nos Estados Unidos, quase 60 anos atrás. Revi agora com
literalmente outros olhos, pois, infelizmente, não sou uma versão restaurada de
mim mesmo.
Orson
Welles é, de certa maneira, um anti-Lubitsch. Enquanto o alemão só teve
prestígio e sucesso por toda a vida, Welles precisou brigar para fazer seus
filmes, sem contar os que não conseguiu fazer.
O
fato de ser o autor do que é universalmente reconhecido como um dos melhores
filmes de todos os tempos, Cidadão Kane, não o ajudou. Othelo levou três anos
para ser filmado. Sem produtores dispostos a patrociná-lo, Welles usou o
próprio dinheiro, ganho com seu trabalho como ator, para financiá-lo.
O
maior problema quando as filmagens eram retomadas, depois de cada interrupção
por falta de dinheiro, era conseguir reunir de novo o elenco. O resultado dessa
irregularidade só aparece no filme na variação da maquiagem do mouro, que em
certas cenas está mais escuro do que em outras.
Fora
isso, o filme é impressionante. Nunca, com exceção, talvez, do cinema
expressionista alemão, ângulos de câmera e enquadramentos insólitos foram
usados tão poderosamente para criar um clima de presságio e drama.
Hoje
um estilo de filmagem parecido seria considerado preciosismo, mas a idade deu
uma certa respeitabilidade ao exibicionismo de Welles. Você o degusta com
prazer.
Othelo
tem algumas das frases mais citáveis de Shakespeare. “Pompa e circunstância”,
por exemplo. E a autodefinição de Othelo como “alguém que amou não sabiamente
mas demais”. E sua gratidão à doce Desdêmona por ter recompensado o seu relato
de batalhas e sofrimentos com “a world of sighs”, um mundo de suspiros.
Como
em todas as versões de Shakespeare no cinema, você sente não poder assistir a ela
com um glossário do lado, para não perder nada da linguagem. A solução é
resignar-se a não entender a metade e gostar de tudo. Ainda mais na voz
tim-maiesca de Orson Welles.
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