18
de maio de 2014 | N° 17800
CÓDIGO
DAVID | David Coimbra
Vida de solteiro – o
improviso
Então...
Ao escrever o “o” redondo de “então”, ocorreu-me que os paulistas começam
histórias com então, mas não tenho nada contra paulistas, então: Então lá está
você com a coisinha que colheu do terreno fértil da noite como quem colhe a
mais olorosa camélia do mais florido jardim. Aliás, sobre camélias, a história
da Dama das Camélias, do Dumas Filho, consagrou a camélia como uma flor sem
perfume, já que a “dama” do romance, doente que estava, ficava nauseada com o
cheiro forte das flores, e por isso só aceitava camélias, que, segundo Dumas,
não têm cheiro, e assim a dama morreu cercada delas. Só que descobri, depois de
ler o livro, que a camélia tem odor, sim, suave, mas tem, e bom odor.
Mas
estava falando da sua camélia. Daquela coisinha que você trouxe para a sua
choupana numa madrugada feliz. Vocês já se amaram e você está satisfeito com
seu desempenho taurino, achando que impressionou, e ela está lânguida como uma
gata preguiçosa e aparentemente saciada, mas não, ela não está saciada, não de
todo, porque, olhando para você com aqueles olhos felinos dela, ela ronrona,
quase fazendo miau:
–
Estou com fome...
Fome?
A esta hora? A madrugada avança como um Lewis Hamilton, não há mais nenhum
tele-xis-galinha aberto em lugar algum da maldita cidade, e o que você tem em
casa para comer?
NADA!
Ou
quase. Na sua geladeira há coisas antigas fermentando em potes de plástico que
você tem medo de abrir, uma garrafa com o que a minha avó chamaria de água da
pena, meia garrafa de Coca e dois ovos. E, no armário em que você coloca o sal
grosso do churrasco, dorme um pão tão bolorento que podia ser usado para fazer
penicilina, mais um grande saco aberto de Ruffles, a batata da onda, fechado
com um prendedor de roupa. E é isso.
Sua
reputação está em jogo, você não pode fazer feio com a coisinha. Não você, que
tanto se esforçou para dar a ela a impressão de que era um homem de verdade, um
homem respeitado pelos garçons, temido pelos gerentes de banco, admirado pelas
mães das vestibulandas, um homem que tem o controle sobre sua própria vida. O
que você pode fazer? Aí está. Você sabe exatamente o que fazer. Exatamente.
Você
vai fazer o que descreverei agora. Trata-se, amigo leitor, de um conhecimento
que, supus, só eu e poucos iniciados detínhamos, só eu e velhos companheiros
dos tempos de solteiro, quando as madrugadas eram longas como num romance de
Fitzgerald e o alvorecer róseo como os da Ilíada, quando, sobretudo, a arte do
improviso era fundamental para a sobrevivência. Mas parece que não. Parece que
outros compartilhavam do mesmo conhecimento. Já me disseram que essa receita
foi tema até de programas de TV. Será? Seja. Seguirei em frente mesmo assim e
contarei para você, ávido leitor, como se faz uma inefável...
...TORTILLA
DE RUFFLES,
A
BATATA DA ONDA.
Ingredientes:
1.
Um saco aberto de Ruffles, a batata da onda, fechado com um prendedor de roupa.
2.
Dois ovos.
3.
Azeite.
Muito
bem. Você emprestou uma camiseta a ela, o que foi muito cavalheiresco da sua
parte. E lá está ela só com a sua camiseta, uma visão doméstica e linda, ela
enroscada como um gato no sofá da sala, as pernas longas e flexíveis dobradas
de lado, o controle remoto na mão, clicando em direção ao GNT. Você olha e
marcha impávido para a cozinha. E agora vamos ao...
MODO
DE PREPARO:
Pegue
o saco de Ruffles e, sem abri-lo, amasse e triture o conteúdo com suas mãos de
titânio. Amasse e triture tudo, sem pena. Amasse, amasse, amasse. Triture,
triture, triture.
Cumprida
essa etapa, passe para os ovos. Quebre-os. Atire as gemas e as claras num pote.
E bata com o garfo no sentido horário, sempre em sentido horário. Bata com
vigor, até fazer espuma. Bata, bata, bata.
A
seguir, esparrame uma rodela de azeite do tamanho de um pires de cafezinho na
frigideira e coloque no fogo. Enquanto a frigideira esquenta, misture a
batatinha picada aos ovos adrede batidos. E bata de novo. Bata, bata, bata.
O
azeite está fervendo. É hora de despejar o creme formado pelos ovos e pela
batatinha. Você despeja e espalha. Espalha, espalha, espalha.
Não
precisa acrescentar sal, porque a batata já é salgada como os preços dos
ingressos da Copa. Abaixe o fogo para não queimar no fundo. Como você não tem
segurança para fazer aquele truque de atirar a tortilla para o alto, feche a
frigideira com uma tampa grande de qualquer outra panela – o vapor vai ajudar a
cozinhar a parte de cima da tortilla.
Espere
poucos minutos. Espere. E... maravilha!, está pronta a sua tortilla!
Não
sirva na frigideira, isso lhe subtrairia pontos. Sirva numa travessa, ou algo
do gênero. Pegue a meia garrafa de Coca (espero que você não tenha tentado
segurar o gás com uma colherinha na abertura; não funciona). Leve para a
coisinha. Na primeira garfada, ela vai sorrir para você, é certo que ela vai
sorrir para você. Você é o cara. O romance começa agora. E sua vida de solteiro
começa a terminar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário