27
de maio de 2014 | N° 17809
FABRÍCIO
CARPINEJAR
Amor de menino
Falava
errado no Ensino Fundamental, com dificuldade de pronunciar o r ou diferenciar
o b do p e o f do v.
Ninguém
respeitava minha algaravia, língua enrolada, presa ao céu da boca. Nasci no país
estrangeiro do ventre de minha mãe.
Virei
motivo de piedade escolar.
Os
amigos debochavam de mim, pediam para que repetisse tênis a qualquer momento,
para que soasse como aquilo... vocês me entendem.
– Fabrício,
teu tênis está desamarrado!
E o
pior é que não sabia amarrar o tênis, o que facilitava a reincidência da piada.
Fiz
fonoaudiologia (por que um nome tão complicado para quem pena com a dicção?) por
cinco anos; pisava, contrariado, os palcos do colégio; apresentava, nervoso,
trabalhos em grupo no quadro-negro.
Ia,
cumpria os objetivos de modo mediano, satisfatório, no limite das notas.
Enfrentei
meu medo com muito medo. Em algum lugar de mim, todas as ofensas estão
guardadas e chaveadas. Nem procuro para não chorar.
Se
eu perdoei as agressões? Acho que não. Não me lembro, não me esforço para
lembrar, que é o mais próximo que cheguei do perdão.
Meu
pai dizia que precisava imitar Demóstenes, que era gago. Ele colocava pedras na
boca e rugia mais alto que o som das ondas. Tornou-se o maior orador da Grécia.
Fui
um pouco Demóstenes no quintal de casa: em vez de pedras, mastigava as minhas
dores. Em vez do mar, disputava meus gritos com o canto do quero-quero.
Tropeçava
no idioma e seguia em frente. Sou o único brasileiro naturalizado brasileiro.
Assimilei
macetes de sobrevivência. Evito sons perigosos, decorei enormidade de sinônimos
do dicionário Aurélio para não me incriminar novamente. Assumi um papel de
liderança verbal para não sofrer com a timidez.
Amadureci
armado de defesas.
Mas
há um único momento em que relaxo; um único em que me torno vulnerável, ao lado
de minha mulher.
Ela é
minha tradutora quando estou cansado e demolido e as palavras custam a sair legíveis.
É minha
intérprete no carro, na rua, nas festas.
Com
imensa paciência, me explica aos amigos, como se eu estivesse discursando em
inglês.
Completa
minhas frases sem sentido, arruma os contextos, fundamenta a loucura de meu
raciocínio.
Fico
coerente em seus lábios, organizado, biblioteca em ordem alfabética.
Transpõe
nosso dialeto, corrige ambiguidades e me protege de incompreensões.
Entende
que, exausto, regrido e abro a boca preguiçosamente, não termino o pensamento,
sou um isqueiro que somente produz faíscas.
Ela
me soletra, minha letra de sol, meu fogo inteiro.
Queria
ter conhecido Katy na minha infância, porque hoje meu amor por ela também é um
amor de menino.
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