LUIZ
FELIPE PONDÉ
'True philosopher'
Uma
máxima moral: a virtude é silenciosa e cresce sempre num terreno que lhe é
hostil
"Há
uma luta entre a luz e as trevas", diz o detetive Rust Cohle (Matthew
McConaughey) na série "True Detective", na última cena do último
episódio da primeira temporada.
Já
disse e repito que as séries americanas são hoje, de longe, o maior experimento
dramatúrgico nos EUA, porque o cinema americano quase não existe, derretido
pelo medo do politicamente correto, esta praga que em breve terá destruído toda
a criatividade ocidental, à semelhança da arte soviética. Qualquer artista que
submeta sua arte ao projeto "para um mundo melhor" é um artista ruim.
A
ideia de que há uma luta deste tipo é comum à filosofia, teologia e literatura.
Dostoiévski diz algo semelhante nos "Irmãos Karamazov": "Há uma
luta entre Deus e o Diabo e o placo é o coração humano".
Nos
"Manuscritos do Mar Morto", textos judaicos datados do período em
torno do nascimento da era cristã, encontrados em cavernas do mar Morto nos
anos 40, afirma-se a mesma luta entre os filhos da luz e os filhos das trevas.
Nathan de Gaza, século 17, "profeta" do falso Messias Sabatai Tzvi,
dizia que o mundo, assim como a alma de Tzvi, um melancólico, era dilacerado
por forças antagônicas de luz e trevas. Vejo nisso uma poética da agonia como
habitat da alma humana.
Rust
Cohle é um detetive filósofo típico da tradição que vai de Sam Spade
(interpretado por Humphrey Bogart) a Philip Marlowe (interpretado por Elliott
Gould e Robert Mitchum). Niilistas, todos eles trazem a marca de uma visão
pessimista sobre a humanidade.
Cohle,
no primeiro episódio, afirma que é pessimista (e define essa condição como
sendo "ruim em festas"). E afirma sua "cosmologia": a
consciência humana é um erro da evolução.
Segundo
nosso "true philosopher", todos pensamos que somos "eus",
mas somos apenas seres que arrastam essa ilusão em meio a uma programação
genética que nos obriga a sobreviver. Um diálogo entre o niilismo nietzschiano
e o determinismo darwinista de Richard Dawkins não seria muito diferente.
De
onde vem esse pessimismo que dá a esses detetives um tom maior do que meros
personagens à procura de criminosos?
No
caso especifico de Cohle, esse pessimismo vem de uma família de origem
destroçada, de uma filha morta muito jovem, de um casamento destruído devido a
esta morte, de muita bebida e muita droga, de quatro anos infiltrado no
narcotráfico e de uma longa investigação entre satanistas, pedófilos
"cristãos" e serial killers de mulheres (esta investigação é o
conteúdo dramatúrgico dos oito capítulos da primeira temporada).
Entretanto,
sua grandeza não é redutível às suas "pequenas causas" psicológicas.
Se assim o fosse, ele seria apenas um deprimido. Sua grandeza como personagem
se dá devido ao modo como ele constrói, a partir de sua miséria pessoal, um
julgamento preciso da humanidade. Julgamento este que impacta por sua possível
consistência.
Há
uma questão maior aqui, e que une os grandes detetives nesta concepção niilista
de mundo: a experiência com a (sua própria) natureza humana. Sim, natureza
humana, este conceito que muitos "especialistas" teimam em dizer que
não existe.
Não
vou entrar nesta discussão sem fim, prefiro usar a ideia de natureza humana
como "licença poética". Há muito que não me importo com debates
"especializados".
Sabe-se
bem, mesmo entre policiais na vida real, que a proximidade com a miséria humana
mais pura pode levar alguém à descrença na natureza dos homens.
Ainda
que, como bem mostram esses três personagens, isso não impede virtudes como
coragem, generosidade, sinceridade, doçura. Muito pelo contrário, muitas vezes
é justamente a dureza do desencanto com a natureza humana e o sofrimento
psicológico que ela traz no cotidiano (como no caso de Cohle) que possibilita
tais virtudes.
A
virtude é silenciosa e cresce sempre num terreno que lhe é hostil. Máxima
ignorada por todos que, principalmente em épocas do novo puritanismo político
que assola o mundo da cultura, cantam seu amor e sua misericórdia pelo mundo e
pelos que sofrem. O amor ao mundo deve ser escondido como uma pérola.
ponde.folha@uol.com.br
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