terça-feira, 31 de dezembro de 2013


31/12/2013 e 01/01/2014 | N° 17660
 LUÍS AUGUSTO FISCHER

Uma história de atropelos

Não é por ser fim de ano, mas me ocorreu fazer um balanço sobre tema espinhoso: a história do ensino de leitura no Brasil. Assunto que vai longe, mas pode ser sumariado a cinco momentos.

Um: enquanto durou a escravidão no país, não dá pra pensar que tenha havido ensino de leitura realmente sério. Para os muito poucos que tinham acesso, até podia haver alguma sofisticação, mas era realmente exceção. Não se reconhecia esse direito essencial a todos.

Cem anos depois da Queda da Bastilha é que o Brasil aboliu o estado servil, e a república cogitou oferecer escola para todos. Cogitou, apenas. E quando começava a haver um certo crescimento nessa oferta, eis que surge o rádio, na virada dos anos 1920. E as massas urbanas encontraram nele o meio de sobreviver na cidade sem ler, nem para saber das notícias, nem para ler poesia (agora havia a canção em lugar dela, oferecendo toda uma forma de ver e viver o mundo, em alta qualidade estética).

Uma geração depois, anos 1960, com uma população mais urbanizada do que nunca e querendo escola e até universidade, outro atropelamento: era a vez da televisão oferecer notícia e narração, passando por fora das letras escritas. (A telenovela faz a formação sentimental do brasileiro há duas gerações inteiras.)

Aí veio a reforma do ensino do começo dos anos 1970, auge da ditadura. Ecoando teorias novidadeiras (e mal digeridas, como quase sempre acontece com os gestores da educação no país) do momento, rebaixou-se o ensino de português e de literatura ao estatuto de, argh, “comunicação e expressão”. A leitura funcional foi prestigiada, mas a leitura literária, culturalmente mais exigente, perdeu lugar e prestígio.

Agora apareceu o Enem, que repisa o mesmo procedimento: estamos assistindo a mais um momento da mesma força, da mesma lógica, aquela que quer que os alunos na escola (que pela primeira vez está acessível a todos, mas ainda sem qualidade) tenham boa leitura funcional, mas sem exigência de leitura literária.

Por que não quer essa leitura? São várias respostas: muitos gestores da educação brasileira acham que literatura é coisa de elite, coisa nefasta para as massas que pela primeira vez se aproximam da escola. É uma sonora bobagem, concordo. Mas é, na minha triste conta, mais um atropelo do ensino de leitura no país.


Que o ano novo nos ajude a reverter essa tendência.

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