31/12/2013
e 01/01/2014 | N° 17660
CARLOS
GERBASE
O surfista
cadeirante
Tem
certas coisas na vida que valem a pena, apesar de serem potencialmente
perigosas. É o que sempre pensei antes de me atirar no público durante os shows
dos Replicantes. Às vezes, quando a plateia estava especialmente compacta, dava
umas voltas pelo salão, deitado, erguido por dezenas de braços desconhecidos.
Não pensem que esse é um ato de insensatez, ou que é tão excepcional assim. Faz
parte da tradição do punk rock, que criou até um pequeno glossário para
identificar as possibilidades de expressão corporal do público e dos músicos.
O
pogo – que dizem ter sido inventado por Sid Vicious nos primeiros shows dos Sex
Pistols – é a dança que parece uma briga, cheia de encontrões, cotoveladas e
eventuais botinadas. Tudo com boa educação, pra evitar que os empurrões dessa
roda punk virem briga de verdade. É muito divertido.
Recomendo.
Atirar-se no público, dando um salto a partir do palco, chama-se stage diving.
Aqui no Brasil, muita gente chama de mosh, mas parece que é um erro de
tradução. Li recentemente que mosh é o nosso pogo. Antes de mergulhar, é bom
ter certeza de que aquelas mãos erguidas vão mesmo te segurar. Recomendo. Com
supervisão médica e o telefone do Samu no bolso.
Mas
o movimento mais interessante é o “crowd surfing”. Surfar na multidão é
estabelecer um pacto existencial com os espectadores: naquele momento não há
mais distância entre o músico e a plateia. Somos todos um mesmo corpo,
agradecendo aos deuses do rock’n’roll a oportunidade de fazer uma poderosa
catarse coletiva, que não tem equivalente no mundo da música e da arte em
geral. Também recomendo, sem contraindicações. Não exige prática nem
habilidade. Só um pouquinho de coragem.
No
show dos 30 anos dos Replicantes, que aconteceu no dia 9 de dezembro, pude
reviver, depois de 10 anos, toda essa venerável tradição do punk rock. Claro
que, aos 54, não se faz as coisas como se fazia aos 24. Mas e daí? Melhor dois
minutos de surf na multidão que dois anos vendo clipes no YouTube.
Mas
aquela noite especial tinha que apresentar alguma atração inédita. E ela veio
durante a execução de Surfista Calhorda. De repente, olhei para a plateia e,
erguido por dezenas de mãos, lá estava um cadeirante passeando pelo bar
Opinião. Sorridente, provavelmente mais bêbado que os bêbados que sustentavam
sua cadeira, ele erguia os braços, gritava e cantava. Depois de alguns
segundos, mergulhou outra vez no oceano e não foi mais visto.
Não
sei seu nome, nem de onde veio, nem se o ato foi planejado por seus amigos, ou
se foi resultado de uma iluminação súbita. Mas nunca vou esquecer a imagem do
surfista cadeirante. Agora posso ficar mais uma dezena de anos me preparando
para um show dos Replicantes. A banda terá 40, eu terei 64, e,
independentemente da idade que ele tiver, quero ver o surfista cadeirante fazer
suas manobras radicais outra vez. E Porto Alegre continuará a ensinar ao mundo
uma ou duas coisas sobre o sempre jovem espírito do rock’n’roll.
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