23
de dezembro de 2013 | N° 17653
LIBERATO
VIEIRA DA CUNHA
Linhas
cruzadas
Não
sei se você notou, mas há pedaços do Primeiro e do Terceiro Mundos convivendo
entrelaçados bem aqui em Porto Alegre, como linhas cruzadas.
Onde?
Nas
grandes livrarias. Conheço pelo menos quatro que não ficariam deslocadas em
Paris, Nova York, Londres. Apesar das enormes dimensões, são acolhedoras. A
ideia geral de sua disposição permite que a gente possa orientar-se entre
ficção e não ficção. Só não invente de perguntar a um dos atendentes onde
achar, por exemplo, Memórias de Adriano.
Ele
padecerá da vaga noção de que deve dirigir-se à prateleira das biografias, mas
antes disso correrá ao computador mais próximo, apenas para declarar que esse
senhor esgotou-se. Não imagine também ir à seção de CDs para pedir algo de Wagner
ou de Verdi, neste ano do duplo centenário de ambos. The clerk – eles gostam de
palavras difíceis – lhe dirá que não sobrou nada, ainda que você esteja a 30
centímetros do Coro dos Peregrinos ou das Vésperas Sicilianas.
Onde
mais?
Nos
restaurantes ditos sofisticados. Sei de três que na aparência não fariam má
figura às margens do Sena, do Hudson, do Tâmisa. Todos eles têm aquilo que se
chama atmosfera. A decoração é caprichada e traz a assinatura de um bom
profissional. O cardápio lhe chega às mãos envolto em uma sóbria capa de couro.
Os
pratos falam diversos idiomas, ao menos no menu. Mas aí você descobre que fazem
dieta: lhe surgem em mínimas porções. O tempero ora brilha pela ausência, ora
pelo excesso. The rest rooms – ah, de novo o inglês – estão longe de ser um
primor. E, com tudo isso, os preços orbitam por galáxias das vizinhanças do
Maxim’s ou do Tour d’Argent.
Onde
ainda Porto Alegre gira entre dois mundos?
Em
certos bairros. Se você os contempla distraído, vê belíssimas mansões cercadas
de jardins, que devem esconder piscinas, talvez quadras de tênis ou brasões
ilustres. Mas se os observa mais atento, percebe que inúmeras dessas moradas
são em verdade bancos, financeiras, empresas, escritórios, consultórios, pet
houses, ou seja: silenciosas fábricas de dinheiro, quando não mera aparência de
exíguas fachadas espelhadas no aço e vidro circundantes. As calçadas são pistas
de obstáculos, a segurança é um conceito inexistente, vagas para estacionamento
só nas towers (once more!) onipresentes.
Sim,
Porto Alegre não é mais a cidade-menina, aquela que conheci quando tu também
eras menina.
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