29
de dezembro de 2013 | N° 17658
MARTHA
MEDEIROS
Boa entrada
Vou citar dois filmes antigos. Um é o inglês Mero
Acaso, de 1999. Primeira cena: um rapaz bate na porta do vizinho, que é
psiquiatra, e diz que precisa desabafar. São 6 horas da manhã, o vizinho ainda
está de pijama, mas diante do inusitado da situação, convida-o para entrar e o
acomoda numa poltrona.
O
outro filme é o francês Confidências Muito Íntimas, de 2003. Um mulher está se
separando e procura um psiquiatra pela primeira vez. Entra sala adentro e já
começa a contar seu drama, sem dar tempo para o homem respirar. Ele fica
absolutamente envolvido pela história dela.
Mesmo
que você não tenha visto estes filmes, pode imaginar o que eles têm em comum.
No filme inglês, o homem se enganou de porta e bateu na casa de um engenheiro,
que ouve tudo quieto e só então avisa que o psiquiatra mora no apartamento ao
lado.
Mesmíssima
coisa no filme francês. A mulher se enganou de porta e invadiu o consultório de
um contabilista. Mesmo depois do engano desfeito, os dois seguem se vendo para
amenizar a solidão um do outro.
Ambos
os filmes demonstram que terapia é, basicamente, uma via de desabafo, de
investigação emocional, de elucidação de si mesmo, e tudo isso se dá quando estamos
dispostos a falar.
Então
qualquer amigo poderia substituir um profissional? Não. Conversar com amigos é
ótimo, porém eles estão comprometidos afetivamente conosco. Conhecem a nossa
história e já não prestam atenção nos detalhes. E tomam um tempo para falar
deles mesmos, o que é natural.
Além
disso, estes papos são frequentemente interrompidos pela chegada do garçom, por
um telefone que toca, por outras distrações. E, pra culminar, você não está
pagando. Faz diferença. Você não é o centro das atenções. É um encontro,
literalmente, gratuito. E, em terapia, o foco tem que estar todo em você.
Vigilância total para você não fugir de si mesmo.
Longe
de mim estimular alguém a bater na casa do vizinho para contar seus sonhos e
fantasias secretas. Ele mandará você plantar batatas, com razão. O que
interessa disso tudo é o crucial: o quanto é importante falar. E ser
profundamente escutado. E, mais profundamente ainda, escutar a si mesmo. Não é
fácil ouvir nossa própria voz verbalizando aquilo que sentimos de forma tão
confusa e irregular. É quando passamos a reconhecer abertamente nossas
inquietudes, medos, vergonhas. E a nos comprometer com o que está sendo dito. A
verdade ganha legitimação. Deixa de habitar apenas o silêncio, onde tudo fica
protegido demais.
Alguns
não acreditam em terapia e dizem que não é qualquer um que merece ouvir nossas
intimidades. Mas tem que ser qualquer um, no sentido de qualquer desconhecido,
qualquer pessoa que não tenha nada contra e nada a favor de você, que não lhe
conheça, para poder lhe ouvir sem uma opinião prévia sobre sua história. De
preferência qualquer um com um diploma na parede e competência para ajudá-lo a
se conhecer pra valer.
Que
lhe faça descobrir os efeitos terapêuticos de ouvir a própria voz assumindo
questões que até então não eram enfrentadas. Dá para fazer isso sozinho também,
mas com um interlocutor é mais fácil. Ou menos difícil. Tente. Nada como bater
na própria porta e entrar. Feliz 2014.
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