16
de dezembro de 2013 | N° 17646
LIBERATO
VIEIRA DA CUNHA
A
dama da neve
Pode
haver melhor maneira de festejar um aniversário do que como piloto de provas em
pistas do sul da Espanha? Pois foi o que me tocou num outro dezembro: experimentar
uns caríssimos carros europeus por entre Algeciras, Málaga, Marbella, Ronda,
Antequera, em estradas como nunca teremos.
Não
me saí mal nos testes com aquelas máquinas poderosas, que hoje só vejo
frequentando anúncios e filmes de TV, e, como recompensa, fui convidado a ir à França.
Mas tinha um problema: caía toda a neve do mundo sobre o outro lado dos
Pirineus.
Eu
devia saber: de vez em quando neva muitíssimo sobre a França em dezembro,
embora seja relativamente raro. Nevou em várias guerras, mas eu não estava em
guerra contra ninguém, a não ser, talvez, contra meus primeiros cabelos nevados.
De
modo que fiz o check-in no hotel cinco estrelas (ou seriam seis?) em Paris e
fiquei vendo a neve pousar sobre os telhados, os mesmos que abrigaram pessoas
tipo Stendhal, Mérimée, Balzac.
Aí soou
o telefone: meus amigos do tour da Espanha, mais uma aeromoça canadense,
convidavam para ir ao Louvre. Agradeci, com a polidez requerida e com certa dor
íntima, pela aeromoça: já tinha visto o Louvre umas 156 vezes. Preferi sair
pela neve, mas ela aumentou, de forma que peguei ao acaso o metrô, que no
momento parecia um barco que desconhecia todos os pontos cardeais.
Por
milagre, havia um lugar vago e eu percorri as entranhas da Terra sem beira nem
rumo. Nevava sobre meu coração, e pensei que aquele não era o melhor modo de
rever Paris. E, vejam só, no exato instante em que aqueles pensamentos fluíam
por minha mente, percebi que me olhava uma deusa – nada menos que algo no gênero
Fernanda Lima avant-projet.
Estava
sentada quatro fileiras adiante. Em cada longa curva, em cada minuto em que o
homem de sobretudo azul deixava cair o corpo para a direita, em cada intervalo
em que a senhora de verde se espraiava para a esquerda, nos perdíamos um do
outro, naufragados.
Tinha
uns olhos que não consigo esquecer: belos e profundos. Toda ela era também bela
e, imaginei, profunda.
Não
imaginei muito mais. Quando desceu, na estação Opéra, corri atrás, e ela me
sorriu. Mas então o universo se fez inteiramente branco e uns 156 trilhões de
flocos de cristal brilhante engoliram o Palais Garnier, a Rue de la Paix e
todos os boulevards, e a deusa se transformou numa estátua súbita e álgida e
translúcida.
Até hoje
nunca deixei de amá-la.
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