30
de dezembro de 2013 | N° 17659
L.F.
VERISSIMO
Detalhes,
detalhes
Há
muitas maneiras de se medir progresso, ou pelo menos mudanças históricas, além
dos frios números de uma economia ou além da sociologia convencional. Muitas
vezes o detalhe que não é notado é o mais revelador. O Marshall McLuhan (lembra
dele?) construiu uma tese inteira em cima da importância da invenção do estribo
de cavalo na história do Ocidente. O estribo significou que o aristocrata
também passasse a participar das batalhas junto com o pobre soldado a pé, com
tudo que isso implicava de novo em questões como relações hierárquicas – e de
mortandade entre aristocratas.
A
história das armas de guerra, que no fim é a história da civilização, pode ser
medida em detalhes como o aumento da distância possível para se matar um
inimigo, começando com o olho no olho e o tacape na mão do tempo das cavernas,
passando pela espada, a lança, o arco e flecha, a catapulta, o mosquete, o
fuzil, o canhão, o bombardeio aéreo etc., e culminando no drone teleguiado, o
mais longe que se pode chegar do inimigo sem precisar olhar no seu olho.
Ainda
não foi tema de nenhum tratado sociológico, que eu saiba, mas a diferença entre
o status do negro nas sociedades norte-americana e brasileira, uma
evidentemente racista e outra pretensamente não, pode ser encontrada em um
detalhe, a quantidade de pianistas negros nos Estados Unidos em contraste com
quase nenhum no Brasil.
O
jazz teve duas vertentes, três se você contar os blues: as bandas de rua, que
desfilavam, obviamente, sem pianos, e o “ragtime” que era jazz exclusivamente
de piano, já tocado, lá nas origens, por músicos negros como Jelly Roll Morton.
Pianistas negros pressupõem piano em casa, dinheiro para pagar as aulas, tempo
para praticar – ou seja, pressupõem uma classe média.
Em
Nova Orleans e em outras capitais do sul dos Estados Unidos, em meio ao
apartheid oficial, à discriminação aberta, aos linchamentos e outros horrores,
desenvolveu-se uma classe média negra, paralela à branca, com identidade e
poder econômico próprios. No Brasil do racismo que não se reconhece como tal, e
talvez por causa disto, não aconteceu nada parecido.
Claro,
a história econômica dos dois países explica o contraste mais do que racismo
declarado ou disfarçado, mas neste detalhe a diferença fica clara. No Brasil,
como nos Estados Unidos, existem grandes músicos saídos de todas as classes
sociais. Mas ainda não produzimos pianistas negros em número suficiente para
desmentir a nossa hipocrisia racial.
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