15
de dezembro de 2013 | N° 17645
O
CÓDIGO DAVID | DAVID COIMBRA
VIVER A VIDA
PERFEITA
Uma
vez eu estava em Binsberg, cidadezinha que fica perto de Bergisch Gladbach, que
fica perto de Colônia. Alemanha.
Binsberg.
Terá uns cinco mil habitantes, se tanto. Um lindo lugarejo. Bucólico,
obviamente. Flores e passarinhos e casinhas com cerca branca, toda aquela
coisa. Estive lá durante a Copa de 2006.
Aconteceu
que, num sábado, nós conseguimos uma folga. Todos os colegas da equipe
decidiram ir para Colônia, a fim de sorver as delícias da cidade grande. Eu
não. Eu quis ficar em Binsberg.
Fazia
um belo sábado, digno da glória dos sábados, com uma luz que encharcava a manhã
e uma temperatura suave como a carícia da mulher amada. Saí caminhando do
castelo em que estávamos hospedados. Sim, estávamos em um castelo. Na verdade,
um antigo mosteiro que parecia um castelo, uma construção majestosa e algo
ameaçadora encarapitada no alto de um monte. Podia ser locação de filme de
terror. Meu quarto era a célula de um velho claustro.
Às
vezes imaginava a freira que ali viveu. Suas noites solitárias, sua devoção
encanzinada. Olhava para o pé da cama e pensava que ela devia ter feito suas
orações ajoelhada bem naquele lugar, as mãos postas, os olhos cerrados, a mente
e o coração concentrados no Altíssimo. Teria agonizado no quarto em que eu
dormia, a bondosa irmã? Naquela mesma cama em que me deitava? Seu espírito
silencioso ainda vagava por lá de madrugada dentro do seu hábito negro?
Mas
tergiverso. Contava que saí caminhando do castelo em que estávamos hospedados e
caminhando fui até o centro de Binsberg.
Então,
entrei no paraíso.
A
rua principal de Binsberg é um calçadão. Lá, numa praça central, havia uma
feira com quiosques que vendiam todos os tipos de iguarias, de frutas e legumes
frescos a salsichas, que alemão adora salsicha, existem 1,5 mil tipos de
salsichas na Alemanha, e também sorvetes deliciosos e doces e, é claro, chope.
Pedi
uma caneca de chope, aboletei-me numa cadeira de palha, finquei os cotovelos
numa das mesinhas espalhadas pelo local e fiquei observando os alemães. Eles
iam à feira com cestas de vime penduradas nos braços, homens e mulheres
sorridentes, com seus filhos, dois, três filhos por casal, filhos esses que
eles deixavam soltos, a correr pela praça. Eles conversavam com os feirantes,
faziam compras, depois se sentavam e ficavam bebendo seus chopes cremosos e
comendo queijo e salame e outros acepipes, e riam com os amigos todos que
tinham vindo dos quatro cantos da cidadezinha.
Pus-me
a pensar sobre a vida tranquila e, aparentemente, perfeita que viviam aqueles
alemães. Sua pequena cidade era bonita, arejada e limpa. Era minúscula, decerto
que era, mas dotada de bons restaurantes, dois ou três cinemas, um teatro e
bares com mesinhas na rua.
Aqueles
alemães, eles trabalhavam pouco, mas seus salários não eram poucos, eles
viajavam pela Europa nas férias e passavam finais de semana aprazíveis nos
recantos da velha Alemanha. Deviam ser muito felizes.
Foi
aí que estaquei.
Seriam
mesmo muito felizes? Ou será que aquele sujeito alto que mordiscava, sei lá, um
torresmo talvez, tinha jeito de torresmo, pois será que aquele comedor de
torresmo não estava insatisfeito no casamento e desejava secretamente aquela
sílfide casada com seu amigo que lhe contava uma anedota alemã? E a sílfide,
quem sabe ela queria ter sido bailarina em vez de ter parido os três filhos
ruidosos que corriam em volta da mesa.
E
aquele outro sujeito vermelho que comprava pepinos em conserva, talvez ele
quisesse ser cantor ou compositor ou ator ou jogador de futebol, e a vida
sempre igual de Binsberg o deixasse frustrado como um canário na gaiola. E
aquela outra menina tão graciosa com seu filho pequeno, ela poderia se sentir
uma fracassada na vida, apesar de pisar no solo do planeta com tanta confiança,
ela poderia, no recôndito do quarto, escrever poemetos e sonhar com a glória
que jamais virá.
Não,
não, não, a vida ideal não é garantia de felicidade. Ou pelo menos não é
garantia de ausência de sofrimento. As pessoas sofrem, neste Vale de Lágrimas,
como diria Jesus. Mas o sofrimento, para alguns, pode ser sublime. Dante. Se
Dante tivesse casado com Beatriz, se ela não o tivesse preterido por um
florentino mais garboso e menos talentoso, se Dante fosse bem sucedido no amor
ele não teria erigido sua obra imortal e fundado a língua italiana moderna.
Michelangelo.
Era outro que sofria. Michelangelo tinha problemas por ser homossexual. E quem
disse isso não foi nenhum autor de biografias não autorizadas do século 16. Foi
Freud. Freud passava horas analisando a estátua do Moisés, naquela igrejinha
perto do Coliseu, e, analisando-a, concluiu que Michelangelo tinha sérios
problemas. Escreveu um livro sobre isso. Assinou-o sob pseudônimo e só assumiu
sua autoria no fim da vida. Michelangelo sofria, pois, e Van Gogh mais ainda e
também o surdo Beethoven e o mal-ajustado Mozart e Dostoievski idem e ibidem.
Esses
homens construíram com seu sofrimento, com sua dor, com seu sangue, com suas
próprias entranhas eles construíram obras-primas que tornaram mais elevado o
ser humano. E você? O que você está fazendo com a sua dor? Não a desperdice
indo à praia. Sofra direito. Seja grande.
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