21
de dezembro de 2013 | N° 17651
PERGUNTE
AO PÓ
Por que a guerra às drogas
faliu
Investimento
em repressão e fiscalização de substâncias ilegais não impede o comércio e
ainda corrói orçamentos em guerra sem avanços visíveis
Carmelo
González mergulha o dedo na solução cáustica antes de enfiar na boca. A mistura
está justa. No tanque improvisado com tábuas e lona preta, folhas de coca se
misturam a gasolina, solventes, ácido sulfúrico e cal que lutam contra as
moléculas da planta para extrair dela o princípio ativo mais puro daquele
mundo: C17, H21, NO4 – o alcaloide da cocaína.
A
mistura tóxica usada para sintetizar o ouro branco da floresta é despejada no
solo e contamina tudo o que toca. Carmelo González será morto por traficantes
no dia em que desistir de trabalhar com a coca. Carmelo González será morto
pelo exército quando for pego trabalhando com a coca. O destino não lhe
reservou muitas opções.
Em
Roma, os olhos dos agentes aduaneiros do aeroporto intercontinental se movem
com esperteza própria. Os homens dedicados a coibir a entrada de drogas no país
revistam turistas que desembarcam todos os dias. Rotina imutável: apreender,
essencialmente, cocaína – que cruza meio mundo camuflada em perucas, disfarçada
de fartos (e falsos) seios, prensada em saltos de sapatos (embrulhados para
presente), misturada em meio a itens de cozinha de uma suposta chef
internacional.
E
engolida em cápsulas, muitas cápsulas. Em poucas horas, estão amontoados na
sala da segurança cerca de 15 quilos da droga com pureza laboratorial. Fosse
misturada a analgésicos baratos ou pó de parede (ou qualquer coisa, incluindo
veneno de ratos), chegaria a 40 quilos para a venda nas ruas; 3 milhões de
euros derramados na economia ilegal.
A
competência dos agentes do aeroporto romano não esconde o fim de um ciclo: a
guerra às drogas, deflagrada há meio século nos Estados Unidos e abraçada pelo
Ocidente, faliu. Ricos e poderosos, os traficantes venceram. As divisões de
repressão correm atrás de uma máquina de distribuição muito mais rápida e
eficiente do que elas.
O
resultado não deveria causar choque; drogas são produtos, e produtos sempre
chegam às mãos dos consumidores. A ilegalidade nunca foi empecilho para a
compra e venda de qualquer coisa, desde o álcool – também inutilmente proibido
nos EUA de outros tempos – até brinquedos, DVD, azeitonas, cigarros, tomates,
seitas filosóficas, religiões.
O orçamento
das polícias de todo o mundo é corroído pelo combate às drogas, uma relação
custo-benefício desequilibrada e com pouco sentido prático. Dados da ONU falam
por si: apenas 5% dos seres humanos usam algum tipo de droga ilícita, a
esmagadora maioria para fins recreativos. Viciados?
Uma
minoria de quase nada. Dos cerca de 230 milhões de consumidores no mundo, só 27
milhões são considerados de risco. Ainda assim, entre eles, a maioria é maluco
beleza, gente fumando maconha, a grande preferida da espécie humana: 4% da raça
a fuma ao menos uma vez ao ano. Consumidores diários da erva: 0,6% (zero
vírgula seis). A cocaína é usada por 0,4% da população mundial. Um sopro
estatístico.
Neste
momento, 100 homo sapiens adultos estão sendo estudados em uma redoma chamada
Terra. Observadores constatam que 42 deles bebem álcool, 25 fumam cigarros, 32
mentem para o imposto de renda e 5 usam algum tipo de droga ilícita, quase
todos, a maconha. É mais fácil encontrar, entre esses animais, um viciado em
pôquer (acaba de perder a única casa da família no jogo) do que em cocaína.
Proibida
nos Estados Unidos nos anos 1930 por causar “crimes, loucura e morte”, a
marijuana é o maior dos bodes expiatórios. Caso fosse vendida legalmente no
país, ela e outras drogas hoje ilícitas renderiam 46 bilhões de dólares anuais
ao governo em forma de impostos. A essa fortuna se somariam os 41 bilhões
anuais gastos com força policial nesse jogo de esconde-esconde.
Dinheiro
que poderia sustentar 15 milhões de estudantes universitários por ano,
financiar toda a pesquisa americana para a cura do câncer por uma década ou
lançar 60 novas missões espaciais (nem que fosse só pra ouvir o comandante
Chris Hadfield cantar Space Oddity).
É
fácil encontrar estatísticas provando que o excesso de drogas mata. Segundo a
ONU, são 200 mil pessoas por ano. Difícil é encontrar dados globais sobre as
mortes causadas pelo tráfico, e não pelo consumo. Diferenciar isso é
fundamental. Só no México, anualmente, são mais de 15 mil cadáveres – vítimas
de uma violência atroz produzida pela mais sangrenta guerra de nosso tempo.
Quantos são os mortos no Brasil? Na Colômbia? No Peru? Em toda a América
Latina? Na Ásia?
Quando
a Califórnia discutia a aprovação de leis para a venda da maconha, os maiores
lobistas contra a legalização investiram pesado: vendedores de armas e aparatos
de segurança que faturam com o medo, sindicatos de policiais que aprovam
orçamentos para atuar contra traficantes e fazer carreira, indústrias de
bebidas alcóolicas que eliminam a concorrência através da lei.
Os
maiores beneficiários, no entanto, são os próprios traficantes, desejosos de
continuar operando em um mercado sem leis onde se pode eliminar um concorrente
à bala e onde o aperto na fiscalização não faz baixar o consumo, mas aumentar
os preços. Um grande negócio patrocinado pelos congressos.
Pecunia
non olet, disseram os antigos romanos. O dinheiro não tem cheiro. Mesmo sem
odor, o dinheiro das drogas precisa ser lavado antes de assumir a forma de
carros, joias, casas, ações, armas. E, por óbvio, voltar a ser cocaína,
heroína, anfetaminas. Máfias antigas reinvestem na própria droga (onde mais
lucrariam tanto?). Novas máfias precisam se capitalizar antes de girar a roleta
da fortuna, e o fazem praticando sequestros, assaltos, crimes; matando. Gente
que não deveria fazer parte desse bilionário mercado de recreação adulta.
Estão
nele porque os governos decidiram que o ópio de cada um é feio, e que não será
vendido com os devidos impostos, controle de qualidade e lucros revertidos ao
setor de saúde – para tratar os eventuais excessos e investir na melhoria do
sistema. Pacientes de todas as doenças seriam beneficiados com pesquisa e
desenvolvimento.
Novos
tratamentos para diversos males poderiam surgir. Em vez disso, traficantes
gastam dinheiro buscando maneiras de fazer com que a mercadoria circule sem ser
notada. Abaixo a saúde, e um viva às perucas despenteadas e aos falsos seios
entupidos de pó.
LEANDRO DEMORI |
JORNALISTA
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