15
de dezembro de 2013 | N° 17645
VERISSIMO - As aventuras da família Brasil
Olé!
Las
Ventas, em Madrid, é a “plaza de toros” mais importante da Espanha. Estivemos
lá há alguns anos, na companhia do fantasma do Goya. A série de gravuras
intitulada Tauromarquia do mestre foi inspirada nas “corridas” de touros.
Ninguém melhor do que ele para guiar nossos passos pela arena vazia. Goya dizia
que tinha sido toureiro na juventude, mas não existe nenhuma evidência disto. O
ponto de vista das suas gravuras de touradas é sempre no chão.
O
artista está dentro da arena, talvez para comparar a destreza da sua arte com a
dos toureiros. As cenas são de ação, mas ao mesmo tempo têm uma certa
solenidade estática, uma consciência de que significam mais do que mostram.
Touros e toureiros ocupam um espaço despojado, distante de qualquer realidade
reconhecível, como símbolos sobre um palco nu.
Símbolos
de quê? Velha questão. O touro representaria a natureza bruta, o que não tem
regras, o instinto, em contraste com os movimentos ritualizados e a razão
aplicada do toureiro. Como o resultado deste encontro de opostos é sempre a
morte – do touro certamente, do toureiro possivelmente – ele tem um caráter de
definição final, uma forma extrema de despojamento. Num rude esporte popular,
repudiado pelas pessoas sensíveis do seu tempo e das suas relações, Goya
retratava uma reincidente dramatização da divisão da alma espanhola entre
emoção e controle, paixão e forma. Ou não.
Ernest
Hemingway lançou seu livro sobre touradas, Death in the Afternoon, em 1932,
antes da Guerra Civil espanhola e da construção de Las Ventas e não muito
depois do governo ter decretado que os cavalos usados pelos picadores fossem
protegidos das corneadas do touro, para evitar o que o público não espanhol
considerava a parte mais repugnante do espetáculo, as vísceras dos cavalos
despejadas na arena. Os cavalos não morriam mais, mas o sanguinário Hemingway
não concordava muito com estes pruridos.
No
seu livro, ele compara o gosto pela tourada com o gosto pelo vinho. Para o
iniciante, o que atrai na tourada é o pitoresco e o supérfluo, o que equivale a
uma preferência por vinhos suaves. Só com o tempo a pessoa começa a distinguir
o essencial da tourada do meramente pictórico, assim como só com tempo se
adquire o paladar para um denso e profundo “grand cru”. O essencial da tourada
é a tragédia ritualizada, e para que esta fosse completa as vísceras na areia
eram necessárias. Hemingway comparava o horror dos turistas com os cavalos
eviscerados a uma renitente queda por frisantes menores.
Na
praça em frente a Las Ventas há uma estátua curiosa, de um toureiro
reverenciando Alexander Fleming, o inventor da penicilina. Milhares de
toureiros devem a sua vida a Fleming, pois antes da penicilina, a maior causa
de morte entre eles não era a chifrada do touro, mas as bactérias introduzidas
no organismo pelo chifre. Eu tinha chegado a Madri literalmente tomado por uma
reação alérgica a um antibiótico receitado para a sinusite. Troquei toda a
minha pele. Saí da Espanha outro homem, pelo menos na superfície.
Tudo
porque não notei que o antibiótico ingerido continha a invenção do Dr. Fleming,
à qual sou alérgico. Só o respeito a tantas vidas poupadas me impediu de sair
correndo e dar um pontapé na estátua.
Nenhum comentário:
Postar um comentário