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terça-feira, 22 de novembro de 2011
22 de novembro de 2011 | N° 16894
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA
Lugar para a ternura
Receio que se agrava a minha desmemória. Antes, esquecia poemas, letras de música, trechos de Machado de Assis. Agora, não consigo lembrar os versos de um tango ou uma declaração de amor. Esses dias tentei evocar a letra da segunda estrofe do Hino Nacional e falhei miseravelmente. Só recordava o “Deitado eternamente em berço esplêndido ao som do mar e à luz do céu profundo”, mas ficava por aí.
Menos mal que a minha desmemória é seletiva. Não esqueço certos capítulos de Minha Vida.
Paris, 1980. Saio do Le Danton e a mais bela das garotas loiras da França segura delicadamente a minha mão e me conduz, junto com outros rapazes e moças , para a cripta da igreja de Saint-Sulpice, onde todos cantam louvores ao Divino Espírito Santo. Me bate uma paz tão bonita que gostaria de ficar ali pelos séculos dos séculos.
Éfeso, Turquia, 2002. Contemplo o anfiteatro grego de 20 mil lugares dispostos em semicírculo e, encantado com aquela perfeição de formas que os milênios não abalaram, mal sinto aproximar-se de mim a menina de seus 20 anos que simplesmente me diz: “Te lembras? Ambos assistimos a Édipo Rei bem naquela terceira fileira de lugares”.
Nova York, 2004. Assisto a O Fantasma da Ópera na Broadway e, fascinado pelo espetáculo e pela música, , no intervalo me ofereço uma dose de Dimples’s on the rocks. É o melhor uísque que já provei em minha existência sobre a Terra. Depois dele, o musical ganha uma nova sonoridade.
Berlim, 1982. Estamos no Viktoria Park e então uma doce brandura baixa sobre mim. Somos cinco reunidos ao redor de uma mesa – e a noite é tão suave como deveriam ser todas as noites de verão. Trocamos ideias sobre o curso que acabamos de concluir, relembramos aulas, episódios, personagens, e aí baixa sobre nós um súbito silêncio. Somos de países diversos e distantes e talvez nunca nos voltaremos a ver.
Costa Oeste, 1984. O Pacífico se estende infinito como o universo. Em algum lugar desta imensidão estão as Ilhas dos Mares do Sul, tão bem descritas por Somerset Maugham. Somos sete numa van e, a certa altura., decidimos descer à praia. São rochas e areias, nada parecido com Copacabana. É quando a moça canadense me dá um beijo na face. Não lhe pergunto porquê. Para certos gestos, só há a explicação da ternura.
Receio que se agrava a minha desmemória. Mas nela haverá sempre lugar para a ternura.
liberato.vieira@zerohora.com.br
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