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sábado, 12 de novembro de 2011
12 de novembro de 2011 | N° 16884
CLÁUDIA LAITANO
O ego do escritor
Em uma das atividades da Jornada Literária de Passo Fundo deste ano, o escritor português Gonçalo Tavares, um dos grandes autores contemporâneos do nosso idioma (premiado esta semana com o segundo lugar no prestigiado Portugal Telecom, pelo livro Uma Viagem à Índia), foi convidado a falar na Praça de Alimentação do centro de convivência da UPF.
Era um fim de tarde, e as mesas estavam lotadas de estudantes aparentemente com mais fome de lanche do que de literatura. Acostumado a plateias reverentes e silenciosas, o escritor foi acolhido com aquela espécie de desinteresse ruidoso com o qual cantores de churrascaria e professores de Ensino Médio estão tragicamente acostumados.
Ao cabo do tempo protocolar, Gonçalo despediu-se gentilmente dos poucos que ainda prestavam atenção. Lamentou a escolha inadequada do local para aquele tipo de conversa, mas reconheceu que o inesperado choque de indiferença teve lá sua serventia: “É bom para diminuir o ego”.
Na psicanálise freudiana, o ego é a nossa cidadela, a fortaleza de mecanismos de defesa que nos protege da angústia e do caos do inconsciente. Na linguagem cotidiana, o termo ego costuma ser usado para designar a nossa autoimagem. Podemos ter o ego “lá em cima” ou “lá embaixo”, dependendo da opinião que temos de nós mesmos e de como somos vistos pelos outros.
O sujeito pode estar com o ego tão lá embaixo, que força a barra para parecer que não. Ou o contrário: sentir-se tão acima de tudo, que se obriga a afetar certa humildade. Neste jogo aparentemente simples, e até um pouco tolo, gastamos boa parte da nossa energia social, tentando não apenas decifrar as mensagens ocultas no comportamento alheio, mas sofisticando nossa própria mise-en-scène de forma a tornar o espetáculo da nossa existência minimamente atraente para quem nos assiste.
O problema é que a percepção do nosso desempenho é fortemente influenciada pela reação da plateia, como notou Gonçalo Tavares na UPF. Um público interessado faz a gente se sentir importante, bacana, cheio da razão. Um interlocutor distraído ou hostil nos joga na vala da insegurança – ali onde o que falamos e pensamos já não nos parece tão sensato ou adequado assim.
Os adultos gostam de pensar que apenas os adolescentes são assim tão voláteis e submissos à opinião alheia, mas é preciso ser muito imaturo para acreditar na maturidade compacta e inabalável.
Já conheci um bom número de escritores. Muitos deles não são tão interessantes quanto suas obras – o que não chega a ser um problema se o seu plano não é se casar ou tornar-se amigo de infância do seu autor favorito. O que eu nunca encontrei foi um escritor convencido da própria importância que tenha conseguido manter uma obra humanamente rica e literariamente provocante.
Para escrever, é preciso levar o ego para passear na planície de vez em quando, variar a perspectiva e desconfiar da posse de tudo aquilo que parece definitivamente conquistado, inclusive a própria autoimagem. Porque é dessa inquietação íntima que a literatura se alimenta – e a vida interior das pessoas comuns também.
claudia.laitano@zerohora.com.br
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