quinta-feira, 17 de novembro de 2011



17 de novembro de 2011 | N° 16889
PAULO SANT’ANA


La Bohéme

Estou contando os dias. Estou contando as horas. E o que eu esperava está se aproximando.

Faltam agora apenas 11 dias.

Sinto um sopro no coração.

Sinto falta do meu amigo Marco Antônio Becker, que foi estupidamente assassinado no meio da noite na Rua Ramiro Barcelos.

Ele me divertia.

Sinto falta de dois amigos que morreram de mal comigo: Hugo Amorim e Túlio Santos. Tão pouco tempo eles tinham de vida, não deveriam ter perdido tempo de mal comigo.

Será que, quando eu morrer, os amigos sentirão assim também falta de mim?

Quando eu morrer, passados dois anos, algum amigo meu levará até o meu sepulcro, num Dia de Finados, um ramo de flores para me recordar?

E, quando ele estiver lá, fora da minha sepultura, o meu coração palpitará de amor dentro da terra.

Sinto falta dos amigos mortos, mas por vezes sinto falta dos amigos vivos, o turbilhão da vida cotidiana nos afasta, mas eles têm de guardar a certeza de que eu os amo, de que eles são as relíquias da minha vida, que sem eles nada teria sentido.

Sem perceber, gastei toda a minha vida querendo fazer amigos. Houve muita gente que se recusou a ser minha amiga. Mas eu me orgulho de nunca ter recusado ser amigo de alguém.

No céu, há de haver um lugar onde todos os dias se faça um happy hour com os amigos. De preferência com um violão no meio da roda.

Eu tenho um disco precioso: Charles Aznavour em espanhol.

Na música La Bohème, de autoria do próprio Aznavour, ele volta a Paris 20, 30 anos depois e começa a recordar a roda de boemia que fazia com os amigos no fim de tarde, avançando pela noite.

O café em cuja mesa sentavam não existe mais, o prédio foi demolido, ele lembra que havia na roda de amigos um pintor, que sempre que conseguia vender um quadro, então era uma festa entre todos eles, que saíam a passear e a correr por Paris, gastando em despesas de bar e restaurante parte do ganho auferido com a pintura.

Ele diz que todos os dias eram dias de boemia. Ressalta que às vezes estavam sem comer, mas sempre estavam sem dormir.

E que muitas vezes se alegravam tanto, que de tão fatigados ficavam prestes a desfalecer.

É de cortar o coração essa e tantas outras voltas da gente, depois de passado tanto tempo, a algum lugar em que se foi feliz.

O céu eu imagino assim, inúmeros reencontros pelos cantos, abraços molhados de lágrimas, canções e frases sendo relembradas.

O céu eu imagino um lugar coalhado de amigos e de todas as pessoas queridas.

Depois de tantas batalhas na vida, depois de tantas lutas, de tantos desânimos e de tantos entusiasmos, bem que nós merecíamos o céu.

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