sábado, 19 de novembro de 2011



19 de novembro de 2011 | N° 16891
CLÁUDIA LAITANO


Autocontrole

Em um dos trechos mais conhecidos da Odisseia, Ulisses, avisado de que estava prestes a velejar por águas assombradas por sereias, não deu chance ao azar: além de tampar os ouvidos, pediu para ser amarrado com correntes ao mastro do navio.

Ulisses era inteligente e estava determinado a voltar para casa, mas o que o ardiloso guerreiro já sabia (e a Odisseia trata de nos lembrar) é que inteligência, coragem e boas intenções nem sempre são suficientes para nos livrar da tentação. Às vezes, apenas uma corrente de ferro amarrada ao mastro de um navio é capaz de nos impedir de seguir o impulso de perseguir as sereias até o naufrágio inevitável. E olhe lá.

No livro Willpower (“Força de Vontade”), lançado há pouco nos EUA, o psicólogo Roy F. Baumeister investiga um dos traços mais complexos da natureza humana: a capacidade de trocar um prazer imediato por um benefício antevisto no futuro.

Enquanto o animal vai tocando sua vidinha previsível preocupado basicamente em se alimentar e reproduzir, o homem depende de sistemas sociais e culturais para sobreviver. Muito cedo, ele aprende que, se sair roubando a maçã do vizinho ou bolinando todas as moças bonitas que passam na rua, é provável que tenha alguma dificuldade para manter a cabeça atada ao resto do corpo.

O autocontrole, porém, andou meio fora de moda. Se na Inglaterra vitoriana era o último grito, entrou em franco descrédito a partir dos anos 60 do século passado. A assimilação de alguns ideais da contracultura pela sociedade de consumo – se você pode ser o que quiser, vestir o que quiser e transar sempre que tiver vontade, está livre também para comprar tudo que cabe no seu cartão de crédito e talvez um pouquinho mais – ajudou a transformar o autocontrole em um valor tão careta quanto a camisa polo e o abrigo de tactel.

Legal era ser espontâneo, curtir o momento, seguir a intuição – filosofia que o mestre Zeca Pagodinho sintetizou magistralmente no clássico “Deixa a vida me levar/ Vida leva eu”.

O que Baumeister tenta demonstrar é que o autocontrole é um traço mais decisivo para o sucesso (não importando o que cada um define como “sucesso”) do que a autoestima ou mesmo o talento.

Em certo sentido, o autocontrole é como um músculo: pode ser treinado, desde a infância, para ficar mais forte e “cansa” se usado em demasia (resistir a uma torta de chocolate pode ser mais difícil depois de uma jornada de trabalho de 18 horas, por exemplo), mas é o que nos faz ter disciplina para estudar quando poderíamos estar tomando banho de sol ou investir em um relacionamento à la carte quando poderíamos estar experimentando todos os pratos de um bufê.

Essa revalorização da força de vontade não implica, obviamente, um retorno ao puritanismo ou ao moralismo – autocontrole sem inteligência é apenas repressão. Mas pode, sim, ser um convite à reflexão sobre nossa capacidade de corrigirmos nossa rota, sempre que necessário, para chegarmos – sãos e salvos ou algo parecido – ao destino que nós mesmos escolhemos. Como Ulisses.

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