sexta-feira, 25 de novembro de 2011



25 de novembro de 2011 | N° 16897
DAVID COIMBRA


Um erro basta

O meu amigo João Raul Borges Neto morava na Salgado Filho. Um apê nos píncaros. Vigésimo andar, se não me engano. Volta e meia eu ia lá, estudar com ele, que éramos colegas de segundo grau no Piratini. Mal entrava, e o João apontava para uma depressão no tapete da sala.

– Uma loira estava deitada aqui agora mesmo – ele dizia, e acrescentava com casualidade: – Nua.

Cara, um guri de 15 anos de idade ouvir isso, naquela época... Eu ficava olhando para o tapete. Que sorte tinha o João Raul. Ele viera do Interior profundo do Rio Grande, atravessava a febre dos 18 anos e agora morava sozinho num apartamento na Salgado Filho.

O que podia querer mais? A vida mundana pulsava na Salgado Filho, com suas palmeiras longilíneas se elevando do canteiro central, seus bares, cafés e cinemas, seus transeuntes elegantes que passeavam sem pressa pelas calçadas, olhando as vitrines, sorrindo, sorvendo a existência. A Salgado Filho era um bulevar, era isso que era a Salgado Filho.

O que aconteceu com a Salgado Filho? Agora mesmo recebi um e-mail de um morador da avenida queixando-se da sujeira, dos mendigos, do tráfico de drogas, da insegurança. O que houve para que tudo se tornasse tão diferente? Para que piorasse tanto?

Vou dizer o que houve: uma única decisão errada. Uma só: no fim dos anos 70, a prefeitura resolveu lá instalar pontos finais de linhas de ônibus. Estacionados ao longo do meio-fio, os ônibus monstruosos passaram a cobrir a visão dos passantes e bloquearam o acesso ao comércio, as filas de passageiros ocuparam as calçadas e afugentaram os frequentadores dos bares e dos cafés. A Salgado Filho foi violentada.

Mas, obviamente, não era essa a intenção dos administradores. Eles pretendiam melhorar a vida do usuário de ônibus. Em tese, tratava-se de uma ação popular; acabou sendo uma ação pouco inteligente. Talvez os gestores da época não compreendessem que a cidade é um organismo vivo, que cada lasca de bairro tem seu estilo e sua vocação que precisam ser respeitados.

A Salgado Filho é uma avenida para ser percorrida a pé, para que o caminhante levante a cabeça e veja um pedaço do horizonte, algo que normalmente não é visto no coração da grande cidade. É para ser usufruída, não para ser utilitária.

Há tantas vocações perdidas em Porto Alegre. Aquele prédio inconcluso em frente ao Chalé da Praça XV. Vi um prédio parecido em Berlim. Os alemães o transformaram em um centro de cultura e lazer alternativo. Lá acontecem exposições e festas, lá as pessoas se divertem em meio ao que devia ser escombros.

Por que não conseguimos fazer algo assim com nossos projetos falidos, como o Aeromóvel, com os nossos planos jamais concretizados, como o Estaleiro Só?

Nós brigamos demais. Temo que, por causa de nossas brigas irresolvíveis, outra vocação de Porto Alegre vá se perder: a vocação boêmia da Cidade Baixa. Só vejo gente contra ou a favor, neste caso da Cidade Baixa.

Só vejo birra. Por que não conseguimos nos entender e chegar a um denominador comum em que todos saiam ganhando? Há que se conversar antes de se tomar uma atitude. Porque, a Salgado Filho já mostrou, basta uma só atitude para causar o mal de toda uma geração.

david.coimbra@zerohora.com.br

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