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terça-feira, 29 de novembro de 2011
29 de novembro de 2011 | N° 16902
DAVID COIMBRA
O prazer solitário e a culpa ancestral
Mas me diga: qual é o problema de o Ronaldinho se masturbar na concentração? Alguém pode alegar que não gostaria de ver o vídeo do Ronaldinho se masturbando na concentração, mas aí a solução é a seguinte: é só não ver o vídeo do Ronaldinho se masturbando na concentração. Além disso, não foi ele quem postou o maldito vídeo.
Foi uma traição da pessoa com quem ele se comunicava pela webcam. Mesmo assim, os “analistas de mercado” preveem que Ronaldinho perderá seus patrocinadores, porque “sua imagem está abalada”. Por quê? O que ele fez de errado? A quem prejudicou? A deslealdade da mulher que falava com Ronaldinho, é isso que devia ter sido alvo de escândalo. O vídeo açula o voyeurismo natural do ser humano, certo.
O vídeo coloca Ronaldinho em uma posição constrangedora, por ter sido flagrado numa atividade íntima, certo também. Mas, afora essas questões unicamente curiosas e de mau gosto, não existe nada de condenável no vídeo ou na atividade de Ronaldinho. Não entendo o abalo da imagem e a consequente fuga dos patrocinadores.
Talvez isso tenha a ver com Judá. Ou seja: é uma questão que remonta há mais de 3.500 anos. Judá foi um dos 12 filhos homens de Jacó, que também era chamado de “Israel”. Jacó, portanto, deu o nome a toda uma nação e seus 12 filhos homens às 12 tribos que a formaram. Um desses, precisamente, Judá. Você, que é esperto, já deduziu que os descendentes de Judá constituíram a Judeia e que dela deriva o gentílico “judeu”. Esse Judá, pois, foi um homem importante.
Judá casou-se com uma Cananeia chamada Sué, com quem teve três filhos: Her, Onã e Sela. O primogênito, Her, cresceu, tornou-se adulto e casou-se com uma moça local, uma certa Tamar. Mas Her era “mau aos olhos do Senhor”, segundo a Bíblia. O que ele fazia de tão maligno a Bíblia não especifica. Seja o que for, não devia ser pouca coisa, pois o Senhor puniu Her com nada menos do que a morte.
Sua mulher Tamar, no entanto, ainda não tivera filhos. Pelo costume da época, o pai do marido morto, no caso, Judá, devia dar a nora, no caso, Tamar, em casamento ao segundo filho sobrevivente, no caso, Onã. Chama-se a esse costume “levirato”. Levir, em latim, é cunhado. Há um técnico de futebol brasileiro que se chama Levir Culpi; ou seja: Cunhado Culpi. Ou será que Culpi tem a ver com culpa? Cunhado culpado. Adequado à sequência da história. Que é a seguinte:
A ideia do levirato é não deixar o primogênito sem descendência. Por isso, o filho que a cunhada teria do cunhado seria considerado filho do marido falecido. A herança da família, assim, passaria para o filho de Onã com Tamar e não para Onã. Afinal, o filho que ele deveria fazer não seria dele, mas do irmão primogênito.
Como Onã espichava o olho para a fortuna da família, ele decidiu que não faria filho em Tamar. Optou por “espojar-se no solo”, de acordo com o Gênesis. Em bom latim, coitus interruptus.
O Senhor, que não precisa da internet para estar sempre atento e que na época adotava a política de tolerância zero, não gostou do estratagema de Onã e matou-o também. Essa sentença rigorosa geraria inúmeras aflições aos rapazes adolescentes dos séculos vindouros, em que a tradição religiosa apontaria a masturbação como a prática de Onã, o “onanismo”.
Por consequência, um ato criminoso, passível de punições terríveis como a cegueira, o definhamento irreversível ou o crescimento de horríveis pelos nas mãos. Porém, trata-se de um erro de interpretação dos teólogos. Porque, embora os patriarcas hebreus fossem muito respeitáveis, é possível que alguns antepassados de Onã tivessem se dedicado a esse prazer solitário que depois foi denominado como onanismo.
O próprio Onã talvez tivesse se divertido dessa maneira antes de esposar Tamar. Logo, não foi o desperdício de sêmen que Jeová puniu tão severamente, não foi o que hoje pode ser chamado de ronaldismo, e sim o fato de Onã recusar-se a cumprir a lei do levirato, recusar-se a reproduzir e a dar sequência à descendência familiar.
Logo, o onanismo (ou ronaldismo) está absolvido em sua acepção clássica. O que reforça a certeza de que não existe nenhum mal original em Ronaldinho se distrair consigo mesmo, ele e sua mão destra, ele e sua imaginação, ele e a internet na solidão das concentrações. E mostra como a sociedade brasileira é repressora, conservadora e, sobretudo, hipócrita.
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