sábado, 14 de maio de 2011



Não sei o que aconteceu. Eu surtei

Farah Jorge Farah, o ex-cirurgião plástico que esquartejou a ex-amante em 2003, revela – em entrevista exclusiva a ÉPOCA – como vive e o que pensa

SOLANGE AZEVEDO - Rogério Cassimiro

SOLIDÃO
Farah deixa a universidade em que estuda, em São Paulo. Ao sair da cadeia, em 2007, ele começou a estudar Direito. Hoje cursa também filosofia


De cabeça baixa, calva à mostra, ele vasculha uma imensa bolsa preta de alças compridas. Estende a mão direita, olha nos meus olhos e faz um desafio:
– Me acha nesta foto.

Uma porção de alunos do Brasílio Machado, um colégio público da Vila Mariana, na Zona Sul de São Paulo, sorriem em preto e branco. Meninas sentadas à direita, meninos à esquerda. Era 1966. Aponto uns quatro ou cinco adolescentes e não acerto.

– Então eu não sei, Farah.
– Vou dar uma dica, estou na primeira fila.
– É este? – Não. – Este? – Também não.
– Então só sobrou o que está de óculos, mas não pode ser. Você me disse que, naquela época, ainda não usava óculos.
– Deve ser reflexo. Aí eu tinha 17 anos. Só descobri que era míope depois, quando fui tirar a carteira de motorista.

Cabelos lisos caindo pela testa, estilo tigelinha, Farah Jorge Farah era um dos garotos mais belos da classe. Ao guardar na bolsa o retrato daquele menino de semblante tranquilo e feliz, ele ressurge em 2009: um sexagenário solitário, emocionalmente instável, que vive atormentado. No ano passado, Farah foi condenado a 13 anos de prisão por ter matado Maria do Carmo Alves, sua ex-amante, e por ter ocultado o cadáver.

Passou quatro anos e quatro meses na cadeia. Obteve, na Justiça, o direito de recorrer em liberdade. Enquanto espera a sentença definitiva, diz que tenta “juntar os cacos”. “Não sou o que as pessoas pensam, minha índole não é ruim”, afirma. “O que fiz foi de maneira irrefletida, impensada. Houve luta. O estresse foi tão grande que minha cabeça balança até hoje, ainda estou confuso. Talvez, quando Jesus voltar, Ele me faça entender o que aconteceu.”

Farah me recebeu diversas vezes nas últimas semanas. Foram 11 horas de entrevistas feitas pessoalmente, mais de duas horas por telefone e uma extensa troca de e-mails. Encontrei um homem de aparência frágil, de boné, com a espinha levemente curvada pelo uso de uma bengala, fala mansa, que se considera vítima da incompreensão social. “O povo quer a minha punição ad aeternum (eternamente)? Quem não comete pecados?

Sou um ser humano, seres humanos agem de forma intempestiva”, diz. Farah se esforça para mostrar-se inofensivo, apegado à família e versado em religião e filosofia. Olhares e palavras – ora em tons frágeis, ora irônicos – sugerem que, muitas vezes, ele diz bem menos do que gostaria. Na primeira conversa, logo me perguntou: “Já leu a respeito do julgamento de Sócrates?”.

Um dos principais pensadores da Grécia Antiga, Sócrates foi acusado de não reconhecer os deuses de Atenas, introduzir novas divindades e corromper a juventude com suas ideias. Mesmo após demonstrar que os argumentos contra ele eram inconsistentes, foi condenado à morte por um tribunal popular, em 399 a.C. De acordo com o relato de Platão (428-348 a.C.), Sócrates não se surpreendeu com a sentença.

Ele acreditava que o dever dos 501 juízes daquele tribunal era punir um homem supostamente nocivo à sociedade – e não necessariamente buscar a verdade. “Sócrates mostrou o incômodo que a falsa sabedoria causava às pessoas”, diz Farah. E recorre a ideias que atribui ao filósofo francês René Descartes (1596-1650): “Os nossos sentidos nos enganam. Só deve ser considerado verdadeiro o que for claro e altamente provado”.

Teriam os sete jurados que condenaram Farah, em abril do ano passado, sido ludibriados pelos sentidos e ignorado o ensinamento de Descartes? “Está claro que houve perseguição. Está claro que tentei a proteção do Estado. Está claro que tentei sair do país. Está claro que Maria do Carmo transtornava a vida de meus pais.

Está claro que ela insinuava que meus pais corriam perigo caso eu não fosse dela”, afirma Farah. “Agi em legítima defesa.” Segundo ele, Maria do Carmo o atormentava havia cinco anos por não aceitar o fim da relação amorosa. Fazia escândalo e invadia o consultório. Ia atrás de seus pais na igreja.

“Será que o Farah se sentiu Deus? Ele julgou, condenou e executou a Maria (do Carmo) sem dar nenhuma chance para ela”, diz o viúvo, João Augusto de Lima, de 51 anos. “A liberdade dele é um descaso da Justiça com a família. Se eu tivesse cometido esse crime, estaria puxando 20 anos de cadeia.”

Farah saiu livre do tribunal porque o Judiciário paulista seguiu uma decisão do Supremo Tribunal Federal, de maio de 2007. Na ocasião, os ministros concederam a Farah um habeas corpus, por entenderem que o esquartejamento e a comoção social causada pelo crime não justificavam a prisão preventiva.

Farah afirma que, no início da noite de 24 de janeiro de 2003, Maria do Carmo foi a sua clínica de cirurgia plástica, na Zona Norte de São Paulo, sem ser convidada. Diz que os dois se atracaram. “Ponto final, dona Maria do Carmo. Na primeira vez, você não me deixou ir, mas agora eu vou.” A ex-amante, ainda de acordo com Farah, partiu para cima dele com uma faca.

“Xingou minha mãe de vagabunda, vadia e de outras palavras de baixo calão... disse que sou homossexual... ela não falava homossexual, talvez nem conhecesse essa palavra.” Farah conta que se defendeu com a bengala. “Ela bateu a cabeça na parede. E o que aconteceu depois, não sei. Eu surtei.” Ele afirma ter acordado na manhã seguinte, sentado numa cadeira, diante de sacos de lixo com o cadáver retalhado.

Nenhum comentário: